Para não esquecer...

DA SÉRIE "TIRAS" - E daí?

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escrito por ai.valhamedeus

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MEMÓRIAS SOLTAS * XXXIV. A Igreja de Santo Estêvão

[este texto é dedicado a duas pessoas: José da Conceição Estêvão Lopes e Ezequiel da Anunciação Estêvão Fernandes. Eles sabem porquê (e eu também)]


No meio do barrocal algarvio ergue-se, imponente, bela, imaculada, soberba, branca, a igreja de Santo Estêvão. O mais importante templo que a humanidade já construiu. 

As suas duas torres, simétricas e altivas, são como duas espadas enterradas, verticalmente, na terra. Firmes, elegantes, extraordinárias.

A importância desta igreja percorre a História e foi inspiração para artistas, músicos, escritores, marinheiros, pintores, caçadores, guerreiros, filósofos, homens de Estado.

Desde logo, Taj-Mahal. Onde foram os arquitetos buscar aquela cor branca? À igreja de Santo Estêvão! 

O homem de Alcala de Henares onde foi buscar aquela frase com que inicia o seu  livrito... “En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme” era o quê? A igreja de Santo Estêvão! Ele não se queria recordar do nome porque não lhe convinha. E para um espanhol de perto de Madrid tudo era La Mancha. Os ciúmes eram muitos e a soberba não o deixava ver.

Jimenez, quando comparava a sua igrejita em Moguer com a Giralda não o faz com a igreja de Santo Estêvão porquê? Por uma razão simples: a igreja de Santo Estêvão tem duas torres e as outras só têm uma…

E qual a diferença entre as catedrais de Sevilha, a Sagrada Família de Barcelona, a Notre-Dame de Paris, as catedrais de Milão, a Basílica de São Pedro, a Catedral de Colónia, Santa Sofia, Bruges, Chartres, e etc e tal e a igreja de Santo Estêvão?  Todas elas têm um aspeto encardido e a igreja de Santo Estêvão é alva, pura, linda.

A baleia de Neville não era cinzenta, mas o reflexo das torres da igreja de Santo Estêvão no Oceano que, por razões da refração da luz, parecia cinzenta.

Ortega y Gasset não disse, nunca, que o homem é ele e a sua circunstância, mas sim “a beleza é a igreja de Santo Estêvão e a sua envolvência”. 

A Persistência da Memória, de Salvador Dali, baseou-se em quê? No relógio da torre de Santo Estêvão. Dali era genial, mas foi ao ver a torre da igreja de Santo Estêvão que teve aquele lampejo de genialidade.

Madame Bovary seria menos propensa àqueles desejos carnais se tivesse ido à missa à igreja de Santo Estêvão.

Se Benjamin Britten tivesse ouvido o sino maior da igreja de Santo Estêvão, nunca teria produzido war requiem, um som agudo e sem alma. Só no Requiem de Mozart se atinge uma dor e profundidade que se aproxima do som sublime debitado por aquele sino.

Napoleão produziu aquela frase famosa... séculos de história vos contemplam, supostamente aos seus soldados, foi proferida ao sair da sacristia da igreja de Santo Estêvão e quando, abrindo a braguilha, se encostou à parede da igreja e aí, encostando o seu instrumento (como dizia o Marlon Brando) de três centímetros e meio, para se aliviar da pressão mictórica. 

E foi na Pedra da Verdade, arrimada à igreja da Santo Estêvão que o Corso, bruto, rude, xucro, escreveu a carta a Josephine que revolucionou a indústria dos perfumes e hábito de higiene das francesas “Josephine, chego dentro de duas semanas. Não te laves”. Esta a frase que revolucionou a indústria titubeante dos cheiros e, sobretudo, a bien-être. Quanto ao hábito higiénico então iniciado, mantém-se.

O sorriso irónico da Mona Lisa deve-se a terem-lhe mostrado uma pintura da Notre Dame de Paris e afirmarem-lhe “é mais bonita que a igreja de Santo Estêvão!”. 

O brilho que se vê na moça de brinco de Jan Vermeer é o da igreja de Santo Estêvão. Nenhuma pedra brilha por si só, sem uma luz que lhe incida. E aquela luz não engana ninguém: é a da luz da igreja de Santo Estêvão! 

Acham que o êxtase de Santa Teresa de Bernini se deveu à espada do anjo a trespassá-la? Nan! Alguém tem um êxtase orgástico ao seu perfurado por uma espada? Não! Atrás do anjinho estava o desenho da Igreja de Santo Estêvão! O mesmo com Caravaggio.

Colombo, vindo de Palos de la Frontera, ao avistar a igreja de Santo Estêvão hesitou. “Não é possível encontrar tamanha beleza na Índia…”. E não encontrou!  Ao regressar, encostou na praia do Homem Nu, caminhou, a pé, da Torre de Aires até Santo Estêvão para render uma sentida e profunda homenagem à Igreja que o tinha maravilhado. Disto não reza a história, pois o alentejano não quis fazer alarde e não queria que o Fernando e a Isabel, os reis de Espanha, sonhassem com tal preito (a ciumeira, amigos, a ciumeira…).

E o Ulisses, meu Deus, o Ulisses não esteve tantos anos perdido, ao contrário do que o livrito diz. Não! Ele veio do Mediterrâneo, encalhou na Torre D´Aires e, do terraço, ficou cinco longos anos a admirar aquelas torres. Qual Grécia, qual meia Grécia! Tamanha beleza nunca se tinha visto. E se não fosse Penélope já ter a lã gasta, ainda o veríamos, hoje, no Fialho a banquetear-se com umas ameijoas abertas ao natural.

Alice, portuguesa de Santo Estêvão, tinha sido empregada do homem. Alice morreu e Beethoven veio ao funeral. Quando ouviu o sino maior da igreja ficou extasiado, rendido, fascinado com aquele som. E assim saiu a quinta sinfonia. Sublime, mas o génio do surdo não se tinha despertado sem aquele som grave e profundo. Isto no início do século XIX.

Raskolnikov nunca teria matado a velha se tivesse avistado a igreja de Santo Estêvão. Nem Karenine caído em amores proibidos. 

A História, a grande História, teria sido diferente se os seus protagonistas tivessem tido a oportunidade de conhecer a igreja de Santo Estêvão, a única igreja que, depois de soarem as badaladas de quaisquer horas, as repete dois minutos depois e o ponteiro das horas, mandrião, assinala uma hora antes… 

Churchill, outro invejoso e com a mania das grandezas, pronunciou que “a igreja de Santo Estêvão é a mais feia das igrejas, tirando todas as outras”. O homem gostava destes paradoxos sem sentido. Mas nunca pintou a Igreja de Santo Estêvão. Livra! Do que nos livrámos!

A passarola de que o Saramago fala, não foi jogada no Rossio, foi de cima da Igreja de Santo Estêvão! O Gusmão vivia perto do Poço das Bruxas, recolhido, com muita fé, beato, e arranjou aquela geringonça com canas da ribeira da Asseca.

O coronel Buendía ainda seria vivo, se tivesse avistado a Igreja de Santo Estêvão. Se Llosa conhecesse a Igreja de Santo Estêvão, a catedral teria saído do seu livro mais famoso. Os moinhos de vento eram as torres da Igreja de Santo Estêvão que o Sancho avistou primeiro da Torre D´Aires. A melancolia do Proust nasceu da impossibilidade de visitar aquela Igreja de que tanto se falava. Hugo, que palmilhou sessenta quilómetros para ir ver a sua amada a Dreux, estava preparado para ir a Santo Estêvão, a pé, mas foi apunhalado pelo corcunda de Notre Dame quando se aprestava a iniciar a caminhada, com um mapa Michelin nas mãos. Foi na sacristia da Igreja de Santo Estêvão que Yourcenar surpreendeu Adriano debaixo de um soldado, e não na Igreja do Santo Anjo. A indiferença de Meursault perante o mundo derivou de não ter dinheiro para visitar aquela magnífica Igreja. Pessoa, o poeta-filósofo, referia-se a quê quando escreveu o sino da minha aldeia? Pois claro! O Álvaro de Campos, que havia nascido em Tavira, disse tais coisas sobre a sonoridade do sino da Igreja de Santo Estêvão, que o homem foi, todo lampeiro, escrever “o sino da minha aldeia/…/Cada tua badalada/soa dentro da minha alma”.

Tudo isto, e muito mais, haveria para contar, mas estão-me a chamar para a consulta, aqui, na Avenida do Brasil. Querem experimentar um latex novo. Até já.

escrito por Carlos M. E. Lopes

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MEMÓRIAS SOLTAS * XXXIII. António Feijão

Os anos de brasa de 1974/75/76 têm momentos de grande fulgor.

Um dia, nas escadinhas da Rua da Galeria, frente à Câmara, em Tavira, havia um cartaz, escrito e feito por mim, do MRPP. Aquele canto era um nosso canto desejado e privilegiado. Na loja do Cunha e Dias.

Às tantas, uma empresa de divulgação da corrida de touros de Vila Real de Santo António começou a colar um cartaz da Corrida de Touros, por cima do nosso cartaz. 

O António Feijão, irrequieto, inconformado e corajoso, chamou a atenção do “marmelo” que se aprestava a colar o cartaz da corrida de touros sobre o cartaz do MRRP, em cima de uma escada. 

Disse o António “queres descer sozinho, ou tiro-te a escada?”. 

O rapaz, envergonhado, desceu da escada e não colou o cartaz. 

O António era assim: voluntarioso, corajosos e convicto.

escrito por Carlos M. E. Lopes

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MEMÓRIAS SOLTAS * XXXII. O juiz

Havia o hábito nas feiras, mercados e festas, no Algarve do sotavento pelo menos, do jogo do “gaitinha”. Tal jogo consistia num dado que, sacudido num copo, era lançado e destapado. Em frente havia um retângulo com os números de um a seis, em duas filas, de um a três e de quatro a seis. Os homens da banca jogavam o dado. Se saísse o número onde o amigo apostasse, ganharia 5 vezes o que tinha apostado. Daí que, o banqueiro anunciasse, “com cinco, vinte cinco”. O jogo era clandestino, ainda que, às vezes, obtivessem uma licença, na GNR, para jogar. Como se sabe, o Estado sempre gostou de ser o maior batoteiro…

No fim do estágio, fui chamado pelo amigo Cansado, escrivão do Tribunal de Tavira, para defender, oficiosamente, um cidadão que tinha sido apanhado com a banca do gaitinha numa festa.

Dirigi-me ao tribunal e aí deparei-me com o cabo Sol. Disse-lhe que precisava de falar com o arguido em privado, pois ele não poderia ouvir a conversa. O cabo Sol, com a delicadeza que se lhe reconhecia, disse-me "E a segurança”? Eu retorqui “o problema é seu, eu posso falar em privado com o arguido".

Lá falei com o homem e ele disse-me que estava a ver o jogo do gaitinha e que, de repente, aparecem dois guardas à civil. Os outros fugiram, mas ele ficou. Eu aconselhei o homem a contar isso na audiência.

Ao ouvir os garbosos soldados do GNR, eles disseram que há muito perseguiam o arguido e que, nesse dia, foram à civil, e apanharam-no em flagrante, com a banca.

Eu, perante os depoimentos dos GNR fiquei convencido de que os soldados estavam a dizer a verdade.

Nas alegações finais, como é hábito e nada havia a dizer, pedi justiça.

Foi aí que eu conheci um juiz (AA, assim se chamava), que perguntou ao último GNR “quanto apreenderam ao arguido?” Aí o GNR balbuciou “200 escudos”.

Sentença do meritíssimo: “Absolvido! Com 200 escudos não se joga à batota”.

O juiz era batoteiro.

escrito por Carlos M. E. Lopes

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TODOS OS CONTOS

[Franz Kafka. Todos os contos]

86 contos em 475 páginas, eis estes contos de Kafka. 

Há contos de linhas e há contos de muitas páginas. 

Sempre a mesma imaginação e uma escrita prodigiosa. 

Viveu somente 41 anos, mas escreveu que se fartou. Dos contos aqui reunidos, permitam que realce a Metamorfose, editada à parte, entre nós, há muitos anos e, neste volume A toca, um prodígio de imaginação. 

escrito por Carlos M. E. Lopes

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A EMIGRAÇÃO E A CHOLDRA

Somos uma país de emigrantes. Desde sempre. No século XIX, Argentina e Brasil, sobretudo. Nos anos sessenta do séc. XX, França e Alemanha. Poucas famílias haverá que não tenham alguém que tenha emigrado. A alcunha da minha família paterna é Paisana, ao que julgo, porque um antepassado meu teria ido para a Argentina e era homem do campo, daí paisana. O meu avô materno foi para França em 1926. Nos anos sessenta, julga-se que cerca de um milhão teriam saído de Portugal. Sem educação, analfabetos, ajudaram à reconstrução da Europa do pós-guerra. Nos arrabaldes de Paris, em Saint Dennis, viviam em bidons de petróleo. As famosas bidonvilles. As remessas dos emigrantes, diga-se, as divisas que para cá enviavam, constituíam uma lufada de ar fresco para o regime e para o equilíbrio das trocas com o estrangeiro. 


A nossa emigração era pobre, sem educação e a ela calhavam os trabalhos que não requeriam qualquer tipo de formação. Trolhas e trabalhadores no campo. Um dia, em Perpignan, encontrei uma homem que já estava há mais de trinta anos em França. Perguntei-lhe “então o amigo sabe bem francês…”. “Não muito, respondeu-me ele, pois trabalho no campo e só me dou com portugueses e espanhóis…”. 

Os emigrantes viviam em guetos, isolados, conviviam entre eles. E hoje ainda, penso eu, em especial os da primeira geração. Esta falta de integração era manifesta. E os de segunda e terceira geração, muitos, estão divididos entre dois mundos: o da origem dos pais e/ou avós e o do país onde nasceram.

Com a queda dos regimes de Leste, e a falta de mão de obra em Portugal, verificou-se um movimento de imigração. Mas estes emigrantes de Leste, ao contrário dos emigrantes que “exportámos”, tinham mais formação. Havia pessoal com escolaridade média e superior. Conheci engenheiros e professores na vindima, nas obras, nas laranjas.

Hoje, para o campo, vemos chegar imigrantes do Bangladesh e Nepal, sobretudo. Além de muitos refugiados de África e Médio Oriente. A fome, a sede, as guerras fazem estas pessoas procurar onde possam sobreviver. Já não digo viver.

E agora, meus senhores, um país que, nos anos sessenta viu debandar mais de dez por cento da população, eis que se torna violentamente contra os imigrantes, esquecendo-se o que foram.

As manifestações de intolerância e discriminação são abjetas.

Eu não digo que não haja choques culturais, mas tenham vergonha! A choldra anda por aí.

escrito por Carlos M. E. Lopes

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NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO

15 de agosto é o dia das Sete Senhoras. Elas são muito mais de sete (alguém sabe quantas?). Segundo algumas contas (há quem faça outras, mas prontusss... nestas coisas, todas as contas valem), são as da Assunção, Amparo, Serra, Aviso, Nazo, Luz e Ascensão. A mais celebrada em Portugal e por essa Europa há de ser a da Assunção.


Tomemos então o 15 de agosto como o da Nossa Senhora da Assunção. Segundo o dogma católico, Maria, a mãe de Jesus, depois de terminar a sua vida terrena, foi elevada ao céu em corpo e alma, sem passar pela corrupção do sepulcro.

Festa bonita-bonita -- o que não impede que eu tenha umas certas dúvidas. Vou elencar algumas:

  1. O dogma da Assunção de Nossa Senhora foi proclamado pelo Papa Pio XII (apelidado -- não consensualmente, é certo -- de Papa de Hitler, pela cumplicidade com o ditador alemão) em 1950. Porquê só 20 séculos depois de a coisa ter acontecido? (Para esta eu tenho a resposta: o conflito de grupos católicos pró e contra a coisa exigiu a democrática imposição através de dogma)
  2. Porquê o dia 15 de agosto? Há várias respostas, uma das quais esta: Maria terá morrido em 15 de agosto do ano 48 d.C. A minha estranheza: como é que quem fixou, certamente com evidências históricas ou científicas, tal dia, mês e ano não se deu ao trabalho de fixar também a hora? É que a hora é importante. Se a Virgem morreu, por exemplo, à meia noite menos um minuto e levou mais de um minuto a chegar junto do seu filho, a celebração no Paraíso será a 16.
  3. Depois tenho dúvidas sobre o meio (o modo) de assunção: Maria terá subido como (em) um foguete ou como um balão de gás de hélio?
  4. Gostava de saber também que roupas e adereços terá levado consigo. Calças jean da época? quantos pares de sapatos? ter-se-á esquecido dos pensos higiénicos? e a escova de dentes? com quem deixou o burro da fuga para o Egito?
  5. Terá encontrado pelo caminho algum extraterrestre? 
  6. E as formalidades de chegada? Teve de apresentar documentos na alfândega celestial? Quem esteve a recebê-la? O marido oficial ou o pai real do seu filho? ou ambos?
  7. Quando tem de emigrar para a Terra (Fátima, Lurdes, etc.), a quem tem de pedir licença para o fazer? À Assembleia da República do Paraíso (mais conhecida por ARP)?

Se alguma alma caridosa me esclarecer, ficar-lhe-ei muito grato e rezarei pela sua assunção no dia do juízo final.

escrito por ai.valhamedeus

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DESEJO

DESEJO

 


Quero-te ao pé de mim na hora de morrer.
Quero, ao partir, levar-te, todo suavidade,
Ó doce olhar de sonho, ó vida de um viver
Amortalhado sempre à luz duma saudade!

Quero-te junto a mim quando o meu rosto branco
Se ungir da palidez sinistra de não ser,
E quero ainda, amor, no meu supremo arranco
Sentir junto ao meu seio o teu coração bater!

Que seja a tua mão tão branda como a neve
Que feche o meu olhar numa carícia leve
Em doce perpassar de pétalas de lis…

Que seja a tua boca rubra como o sangue
Que feche a minha boca, a minha boca exangue!...
…………………………………………………………
Ah, venha a morte já que eu morrerei feliz!...

[Espanca, Florbela. Poesia Completa, Bertrand Editora, Venda Nova, 1994, pág.151]

escrito por Carlos M. E. Lopes

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