Para não esquecer...

ÁGORA [3] os sabores do gelado

Ele – Que tal, o teu gelado?
Ela – Bom. De pistácio e morango. E o teu?
Ele – De morango e pistácio.
Ela – Não é a mesma coisa?
Ele – Quase. Tu tens pistácio e morango. Eu, morango e pistácio. Fecha os olhos e dou-te a provar o morango.
Ela – (Obedece, gulosa.) Mas este é o pistácio!
Ele – Já te disse que são gelados diferentes.
Ela – Sim, senhor!... Mandas-me fechar os olhos e depois enganas-me. Disseste “morango” e era pistácio.
Ele – Nada disso. Olha, prova o verde e diz-me se não sabe a morango.
Ela – Desculpa, o verde é pistácio.
Ele – Isso é o que toda a gente diz. Mas o que o meu paladar diz é que o verde é morango e o vermelho, pistácio. Para ti, no entanto, o verde é pistácio e o vermelho, morango. É ou não é?
Ela – Não será que te puseram no gelado outros corantes?
Ele – Não; comprámo-lo na mesma gelataria.
Ela – (Agitando o cone que tinha na mão até ao ponto de quase lhe cair o gelado) Explica-me. Não estás a brincar comigo. Pensas mesmo que o gosto verde é morango para ti e pistácio para mim.
Ele – E vice-versa. O gosto vermelho é morango para ti e pistácio para mim.
Ela – Não será uma questão de nomes? Às tantas, quando eras pequeno ensinaram-te a chamar “sabor a morango” ao que a mim me ensinaram a chamar “sabor a pistácio” e vice-versa.
Ele – Os meus pais teriam sido muito cruéis, não achas? Ente outras coisas, porque o problema não termina no morango e no pistácio.
Ela – Queres dizer que…?
Ele – Quero dizer que essas coisas amarelas e sumarentas que a ti te sabem a limão a mim sabem-me a groselha, e as pequenas e azuis que para ti são groselha a mim sabem-me a limão. (Por isso gosto de juntar a groselha com o pistácio; porque tenho a impressão de comer morangos com limão).
Ela – (Absolutamente perplexa) Parece-me que te enganas nalgum ponto…
Ele – Claro que sim! Confundo todos os gostos.
Ela – Não, não queria dizer isso. É que há algo confuso na nossa conversa. Dizes que os teus pais não eram cruéis. Ensinaram-te a falar o mesmo idioma que eu falo, não? E a esse sabor, chamava-lo “pistácio”, não?
Ele – É.
Ela – E agora por que é que o chamas morango?
Ele – Porque entretanto tudo mudou! Ao crescer, inverteram-se-me os sabores. Os morangos começaram a saber a pistácio e os limões, a groselha. Tudo ao contrário. Não foi grave; de certo modo, acabou por ser divertido. Experimento novas combinações.
Ela – E como é que posso estar segura de que não me estás a contar uma treta?
Ele – (Põe cara de ofendido)
Ela – Desculpa, não te chateies. Acredito em ti; só estava a fingir que era céptica.
Ele – (Ainda com amargura.) Fico descansado.
Ela – Sempre pensei que, quando os filósofos falam dessas coisas, se limitam a imaginar situações possíveis. Fico surpreendida ao descobrir que não é assim… Espera! Ainda estás triste!
Ele – Estava a pensar que talvez me engane mesmo. É possível que não tenha experimentado uma inversão dos gostos.
Ela – Em que sentido?
Ele – Poderá ser que recorde mal os gostos de quando era pequeno. Pode acontecer que tudo isto não seja mais que uma ilusão da memória, e que o invertido não sejam os gostos, mas a memória. Parece-me recordar que o gelado de morango tinha antes um gosto diferente do de agora.
Ela – Posso acreditar em ti quando me dizes que se te inverteram os gostos. Posso vencer o cepticismo que acompanha sempre a nossa ideia da mente alheia. Mas o que não sei é como é que tu vences o cepticismo em relação às tuas memórias.
Ele – Até se me derreteu o gelado.
Ela – O meu também… Não interessa; misturaram-se os dois gostos e já não é preciso distingui-los. Agora podemos estar seguros de que os nossos gelados têm o mesmo sabor.

[CASATI, Roberto; VARZI, Achille. 39 (simples) cuentos filosóficos. Madrid: Alianza Editorial, 2007, p. 48-52. Tradução de Ai meu Deus]

escrito por ai.valhamedeus

2 comentário(s). Ler/reagir:

Bea disse...

Claro que ao distribuir prémios não podia esquecer esta oferta, aijesus se me esquecia.
Parabéns

Ai meu Deus disse...

Oferta... de pistácio e morango ou morango e pistácio? ;-)

Gracias, Bea!