Para não esquecer...

Escárnio e maldizer


As cantigas de escárnio e maldizer dos trovadores e jograis galego-portugueses não são exemplo de escrita. Algumas, pelo menos – o exemplo que se segue, por exemplo. Trata-se de uma “sátira bastante obscena”, garante Graça Videira Lopes [de quem é a edição das “Cantigas de Escárnio e Maldizer dos trovadores e jograis galego-portugueses” (Editorial Estampa) de onde a transcrevi]. E eu concordo.
Nela João Servando satiriza “um clérigo, D. Domingo Caorinha, cuja impotência o impede de satisfazer a sua amiga Marinha (certamente uma soldadeira). A cantiga teria tido como motivo próximo qualquer altercação sobre a arte de trovar, como parece indicar o refrão. A cantiga de ritmo irregular e muito vivo, está muito estropiada nos mss., mas poderá talvez ser um dos raros descordos do Cancioneiro satírico” (para mais fácil leitura, ver as notas no fim da cantiga).

Dom Domingo Caorinha
nom há proe
de sobir en'[a] Marinha
Caadoe;
quand'ela jaze sobinha
mal a roe
a grossa pixa misquinha
que lhi no seu cono moe.
Por aquesto, Dom Domingo,
nom digades que m'enfingo
de trobar:
e[u] d'outra cinta me cingo
e d'outra Martim Colhar.

Dom Domingo, a Deus loado,
daqui atró em Toledo
nom há clérigo prelado
que nom tenha o degredo.
...............
e vós, Marinha, co dedo
havede'lo con'usado
que nom pode teer vedo.
Por aquesto, Dom Domingo,
nom digades que m'enfingo
de trobar:
e[u] d'outra cinta me cingo
e d'outra Martim Colhar.

Dom Domingo, nom podedes
...............
que com a pissa tragedes
...............
mais como moa fodedes
...............
e sobides e decedes,
quebrand'i vossos colhões.
Por aquesto, Dom Domingo,
nom digades que m'enfingo
de trobar:
e[u] d'outra cinta me cingo
e d'outra Martim Colhar.

Dom Domingo, vossa vida
é com pea,
pois Marinha jaz transida
e sem cea,
per que vos aa sobida
cansou essa cordovea:
ficou-vo'la pissa espida,
que já xe vos [nom] enfrea.
Por aquesto, Dom Domingo,
nom digades que m'enfingo
de trobar:
e[u] d'outra cinta me cingo
e d'outra Martim Colhar.

Notas de Graça Videira Lopes
(verso 2) nom há proe = nom há prol, ou seja, não tira proveito, não consegue.
(v. 3) de subir -
transcrevo o comentário de Lapa que me parece muilo apropriado: «expressão curiosa, que indica o rastejar do homem impotente».
(v. 4) Caadoe
- sigo a leitura de Lapa, que vê no termo um apelido. Mas não será de excluir a leitura de Brancuti ca já doe, ou mesmo ca lhe doe.
(v. 5) sobinha
- deitada de barriga para cima.
(v. 7) misquinha
- infeliz, miserável.
(v. 10) que m'enfingo
- que me envaideço, que me gabo.
(v. 12)
As cintas eram presentes tradicionais entre namorados. Tratar-se-á, pois, de uma alusão a quaisquer negócios femininos.
(v. 13) Martim Colhar
- ou Tolhar; não sabemos quem seja, ou mesmo se será, de facto, um apelido.
(v. 15) atró - até.
(v. 17) o degredo
- o decreto; é provável que a referência seja ao decreto que proibia os clérigos de trovar, e que outras cantigas também referem. Mas também poderá ser a qualquer decreto visando os costumes.
(v. 18)
O verso que falta, que teria rima em , é impossível de reconstituir.
(v. 20) vedo -
vedação; o sentido do verso é: que não pode nunca fechar-se.
(v. 26-33) -
O estado desta estrofe no ms. impede qualquer tentativa de reconstrução. Dispus, no entanto, os versos legíveis numa localização a que a rima os obrigaria.
(v. 30) moa
= mó.
(v. 40) pea
- corda para prender os animais; o sentido do verso será: a vossa vida anda para trás.
(v. 41) transida
- esmorecida; cordovea - veia grossa; o sentido deste e do verso anterior é: porque na subida se vos cansou o sexo.
(v. 42) espida
- part. passado de espeçar (quebrar, despedaçar).
(v. 46) enfrea -
levanta: o sentido virá do universo da montaria (levantar a cabeça - o cavalo - com garbo). O termo também não é claro no ms. Outra leitura possível seria esfrea (esfria), lendo o verso: que já xe vos [or']esfrea.

ai.valhamedeus@gmail.com

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