Grunhir
A maneira sofisticada com que conseguimos não reflectir sobre aquilo que nos inquieta, constitui certamente uma das atitudes mais profundamente primitivas do homem dito civilizado.A forma como nós, civilizados, utilizamos o grunhido para mitigar o incómodo da ignorância; para disfarçar a incapacidade que temos ainda em formular com alguma clareza os problemas que nos inquietam — e a incapacidade, ainda maior, para os resolver — o uso subtil e diverso que fazemos do grunhido, dá uma ideia da variedade de enfeites, da complicada sofisticação de superfície que fomos inventando para rodear alegremente a dificuldade que temos em reflectir, de uma maneira satisfatória, seja sobre o que for. [...]
Existem [...] inúmeras [...] formas civilizadas de grunhir [...].
As interjeições, as onomatopeias, os impropérios, as exclamações; o insulto, a adjectivação exuberante, o circunlóquio, o grito, o slogan; o discurso aparentemente organizado mas que, em rigor, não significa coisa nenhuma; o aparato mímico, o gesto agitado. Tudo isso são, no fundo, formas sofisticadas de grunhir. Tudo isso tem, pelo menos aparentemente, uma importante função confortadora: a de dissipar o mal-estar que resulta da ignorância, da fragilidade real das nossas convicções; o medo da dúvida, da hesitação, da incerteza; a incapacidade de assumirmos a realidade clara das coisas.
Dê-se por exemplo ao trabalho de examinar, durante uns dias, a maneira como você próprio e as pessoas que o rodeiam se exprimem a respeito seja do que for: a culinária, a religião, a morte, as gravatas do seu tio, a justiça social, a atitude de ontem à noite da sua prima, a expansão económica dos japoneses; o amor, a propaganda médica, os filmes de que gostou, os livros que não leu; a dignidade, a aspirina, o gato da sua vizinha, ou o cão dela se não tiver gato, a ideia que teve anteontem e que seria boa se fosse uma ideia, etc.
(MONTEIRO, João Sousa - Tire a mãe da boca. 2ª ed. Lisboa : Assírio e Alvim, 1983, p. 33-35)
escrito por ai.valhamedeus
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