Apareceu ia o período já adiantado (seria pelo meado de Novembro, quando esse ano escolar principiara excepcionalmente no prazo estabelecido, a primeira semana de Outubro). Não era raro alunos do curso nocturno inscreverem-se a desoras. A turma comportava os retardatários, pois nem alcançava a quinzena e havia que contar com os inevitáveis desertores que, baixa a baixa, iam fazendo grossa razia nos efectivos – no final da travessia seria milagre sobreviver uma meia dúzia daqueles estudantes que poderiam arrumar-se em três grupos distintos: adolescentes a quem o insucesso escolar, aceito pela instituição como complacente atestado da sua eficiência selectiva, tresmalhava precocemente do rebanho das criançolas que durante o dia enchiam os corredores da escola com os gritos, saltaricos e voejos da sua alacridade infantil, e com leveza atirados borda fora entravam de aprendiz-sem-salário nalguma oficina, que era outra escola sem dúvida muito mais rigorosa mas também incomparavelmente muito mais instrutiva, aprendiam o decálogo do desenrascanço, fumavam, os calores da puberdade despertada atraíam-nos para bandas propícias, e, quando caíam em si, ei-los de pernas torcidas nas carteiras feitas à medida da canalha miúda, cabeceando de sono, na procura, que as mais das vezes era outro insucesso acrescido, do tempo perdido (ou roubado?); mães-de-família, uma que outra, durázias e pisadas, pretendendo fazer passar por tributo da moda as cãs das crinas decrépitas e oferecendo o pescoço a mais esta canga na expectativa de uma promoção ou, quiçá, na ficção de aliviar um tanto a sempiterna rotina do emprego-lida-da-casa; ou, finalmente – e naquele ano lectivo eram a dominante – guardas-fiscais tarimbeiros que perseguiam no sigundo ano o passaporte para ascender ao posto de cabo.
Tudo casos tipificados. Todos, excepto ela.
Chegou assim tardiamente, quando as noites de Novembro perdiam aquela moderação cálida do Outono meridional e o rio contíguo respirava uma aragem fresca que impunha os primeiros resguardos. Chegou e sentou-se na fila da frente, sobrepondo-se com alarde à sornidão dos rapazelhos que buscavam nos fundos refúgio de mândria e expediente de cabulagem, e ao acanhamento dos guardas-fiscais, que eram outra vez meninos nos bancos toscos da escola primária da sua recordação, só que agora mais encabrestados à reverência professoral, reforçada por uma vida de obediência e servilismo, na caserna. E ali se postou ela, muito hirta dentro do seu espampanante casaco branco comprido, imitação duma pele imponderável. Magra, delgada, frágil por cultivada aparência, na palidez do rosto oblongo a pintura destacava a traço grosso o perímetro dos olhos escuros e a boca esbarrotada de bâton; sobre os ombros, contrastando mais a sua feição alvadia, uns cabelos muito pretos e escorridos. – Quem era? Donde vinha?
Ninguém sabia: e a curiosidade dos condiscípulos ardeu a fogo vivo. Hm!... estranha… desconhecida no meio… ave de arribação… Mas logo ela, loquaz e insinuante, atalhou as especulações: vivia em Espanha (na outra margem do rio) e atravessava todos os dias a fronteira para assistir às aulas – esclareceu lépida, melíflua, suavíssima.
Curiosidade acrescida. Pois… de Espanha!? Vermelhusco, o cabo Faustino, que sobrelevava aos restantes e aspirava a sargento – outros tempos esses, em que para cabo não exigiam o sigundo ano! –, torcia o nariz, desconfiado (desconfiar era o seu ofício), a farejar história. Uma pássara daquelas! Hm!... Hm!...
Imperturbável e despachada, ela não se atrapalhou com as reticências que o bisbilhoteiro avançou com mordacidade aperrada. De Espanha, sim senhor! E acrescentou, com incontível ufania na voz em que rolavam modulações castelhanas: “Mio márido é profésor na universidá de lá”.
Aqui, cabo e praças entreolharam sorrisos velhacos. O rapazio, atento e calado, espiava lá detrás, a ver no que aquilo dava. A parceira do lado, mais indulgente, nem que fosse por espontânea solidariedade feminina, facultava-lhe informações, prestava-lhe esclarecimentos, tolerava-lhe uma camaradagem fácil. Outra congénere, decerto mais suspicaz, guardava uma prudente reserva.
“É profésor de filosófia na universidá de lá”. Espremia os lábios fininhos num trejeito de denguice, quando falava. Expunha para diante, sobre o tampo esverdeado da carteira, as mãos alongadas e cor de cera, de dedos esguios, as unhas berrantemente pintalgadas de verniz vermelho; por baixo, apareciam-lhe as pernas torneadas pela meia de seda, e os sapatos pretos, de saltos muito altos. Ao andar, era como se pisasse ovos.
Quem acreditaria? Quem acreditaria que aquela figurinha delicodoce de manequim de loja barata, toda berliques e berloques, com requebros delambidos nas pestanas tesas de rímel e um falajar de sopeira batida e foleirona fosse, nem mais nem menos, a esposa de um professor universitário – e logo de filosofia!? Que diacho, filosofavam cartesianamente os guardas-fiscais bem chefiados pelo subtil cabo Faustino, coisas daquelas e filosofia casavam-se mal!...
Mas ela não mentia. Pouco menos de um mês e o primeiro período chegava ao fim. O Natal à porta, vésperas de festas, tempo de convívio, pois então. Discípulos e mestres, por alvitre dos primeiros, concertaram uma festarola, no último dia de aulas (na última noite, melhor), um convívio simples, claro, mas sempre ameno e saudável – pedagógico, como soe dizer-se. Além do mais, aberto. Que cada um – dizia entusiasmado o cabo, que mesmo ali comandava, a ponto de os subordinados não ousarem nunca pronunciar-se antes dele –, que cada um trouxesse “a famelga” (cada um, salvo seja: ele, cabo, mulherengo veterano, viria sozinho que era para depois se “desenfiar” e acabar a noite nalguma estúrdia, que já a trazia estudada). E, bendita providência!, logo acontecia dois dos guardas-fiscais serem cozinheiros na cantina da corporação. Vinha mesmo a calhar. Preparavam um pitéu…
Assim foi. O contínuo da noite – que era como se fosse da turma, passava as horas de cabeça assomada na porta da sala, ouvindo a lição e fazendo depois, nos intervalos, os seus reparos judiciosos: “Desculpe lá que lhe diga, senhor Faustino, mas aquela sua resposta…” (o cabo irritava-se, repontava) – reuniu as carteiras em grande rectângulo, formando mesa. A D. Ausenda – respeitável mãe-de-família e por isso convenientemente autorizada pelo consorte – prontificou-se a trazer “uma toalhinha e uns guardanapinhos”; os talheres também apareceram, ou alguém os desencantou. E às oito da noite de sexta-feira, dezassete de Dezembro, estava posta a mesa para a ceia pré-natalícia. A sala de aulas, se não tinha o que se poderia chamar um conchego de consoada, apresentava cenografia festiva: “Feliz Natal” escrito a giz amarelo no quadro preto, em caligrafia garrafal e apurada, nas orlas uns enfeites a verde figurando ramagens de pinheiro. Do enorme tacho de rancho que os dois váteis depuseram com esmero no centro da távola improvisada exalava-se um cheirinho insidioso de frango guisado, que fazia o contínuo (como ele gostava daquelas comezainas, o bandido!) dar sonoros estalos de língua no céu da boca. Muitas cadeiras em redor, para os convivas abancarem à vontade.
Ela foi dos primeiros a chegar, apressada, ofegante, aquele sorriso de fotonovela afivelado, muito couraçada de abafos, porém sempre frágil e delicada como flor especiosa. Retirou dum saco bolos, filhós e garrafas de espumante espanhol, material que distribuiu pela mesa com requintes de dona de casa. Diligente e vaporosa, ia dum para outro no seu andar leve e saltitante de passarinho em que os vestidos ruflavam como se fossem asas, dizendo banalidades, fazendo na sua fala cantarolada, eivada de espanholismos, observações simplórias. Quando entrou, fatal e sublime como uma diva, trazia pelo braço um homem.
Era um sujeito que a altura dos saltos dela fazia parecer mais baixo, metido numa canadiana castanha, boina basca na cabeça, cachimbo preso nos dentes, no meio de umas barbas negras e cerradas que lhe davam um semblante algo feroz. Espanhol retinto, de facto. Muito verboso e, desmentindo a primeira impressão das cerdas, muito jovial. Integrou-se de imediato, entabulou conversas, dali a pouco era da tertúlia. Era então aquele o “seu” professor de filosofia!
Estavam conjuradas as viperinas insinuações do cabo Faustino. A turma rendeu-se. Como se fizessem acto de contrição, desfizeram-se em amabilidades com o convidado, que era inegavelmente de trato simples e desprovido de convencionalismos. Em breve trocava amistosas palmadinhas nas costas com o contínuo, este já alegrote por via dumas libações repetidas dum tinto caseiro e trepador de que um dos guardas-fiscais trouxera um garrafãozito “só para provar”. Quando, após o ágape, e como era inevitável pelo andar da carruagem, principiou a sessão de anedotas, o bom do professor de filosofia também contou das dele, com grande profusão de gestos para se fazer entender, e logrou assinalável êxito. O contínuo era-lhe compincha dedicado – “parece que andaram os dois juntos na escola”, rosnou o cabo Faustino – e, sentado ao lado dele, assentava-lhe amiúde umas pancadas sempre afectuosas, porém não já palmadinhas. Da outra banda, ela. Desfeita em sorrisos, atenciosa para todos, quase implorando que provassem do seu bolo, das suas filhós, rindo desmanchadamente das anedotas mais insulsas, acorrendo solícita a encher copos vazios, insistindo…
O das barbas é que era mesmo um companheirão! A certa altura fez uma habilidade que embasbacou a roda. Tomou duma toalha de papel e, dobrando-a destramente, vincou nela um barco: “una fragata”; seguidamente, fazendo-a inclinar a pique, declarou-a “hundida”; depois desatou a cortar o papel – chaminé, popa, proa – até que, desdobrando os despojos, mostrou à assistência enlevada “el camisón del capitán”! Todos elogiaram em uníssono, entusiasmados. O contínuo reforçou as pranchadas nos costados do artista. Ela, rubra de prazer, atirou para trás a cabeça, bateu com as mãozinhas quase transparentes uns aplausos frenéticos. Impava de orgulho pelo sucesso do seu professor de filosofia.
Mas ele tinha decerto preocupações mais ponderosas do que a prestidigitação. Dali a pouco, com a mesa já arredada para dar espaço e enquanto um gira-discos fanhoso golfava uma música incerta, confessou à puridade que estava assoberbado de trabalho. Preparava tese de doutoramento, que versava sobre Gabriel Marcel, mas a bibliografia escasseava; outrossim o dinheiro, pois a magra bolsa mal dava para umas surtidas de privação a França, para fotocopiar documentos inéditos. Agora no meio da sala, projectando em vibrações sincopadas o corpo flexível, ela ensaiava uma dança de rock com o contínuo avinhado, trôpego, oscilando grotescamente como um boneco desarticulado. Por mais de uma vez sorriu timidamente para o marido, deitando-lhe uns olhares de soslaio que dir-se-ia pedidos de desculpa pelo atrevimento… De pé, tranquilo, ele contemplava e cofiava a grenha da cara.
Passou-se em beleza aquele festivo encerramento do primeiro período escolar. Sucederam-se os quinze dias de férias, após o que as aulas recomeçaram. Sempre muito senhorita, ela voltou a ocupar o seu lugar na fila da frente. Agora, porém, um tanto irregularmente: pelos menos duas noites por semana não comparecia. Justificou-se com algum atabalhoamento, arguindo que “mio márido” andava muito ocupado e não a podia trazer nesses dias (eles costumavam atravessar a fronteira numa camioneta-caravana, em que pernoitavam). E acrescentava, ciciando as palavras e com os olhos rasos duma água azulada que de imediato lhe borrava a maquilhagem carregada: “Eu também queria ser professora! A ver se consigo ser professora! Queria tanto ser professora!”. E num derradeiro arranco, que era já desespero: “Alguma vez serei professora?”.
Nunca seria, era certo. O seu nível de conhecimentos era rudimentaríssimo, rasava mal o a-b-c. Dava erros de ortografia monumentais e o seu espírito, demasiado terreno, recusava as abstracções mais elementares. Aplicava-se muito, mas assimilava as matérias como uma daquelas máquinas debulhadoras que retêm o grão e rejeitam a casca, só que nela o mecanismo funcionava às avessas: fixava as palavras e deitava fora as ideias…
Foi espaçando as presenças; vinha quando vinha, semana sim semana não; ia o segundo período quase no termo deixou definitivamente de aparecer. Durante muito tempo nada se soube dela. Todos, aliás, absortos nas aflições finais, pareceram esquecê-la. Até que o cabo Faustino, que nunca dava um caso por encerrado antes de se convencer – por isso mesmo trepara àquele posto e estava prestes a ascender a sargento – informou imprevistamente que a vira “uma tarde destas” entrando para um carro junto com um tipo.
“O das barbas?”, inquiriram os outros. “O professor de filosofia?”.
“Qual filosofia nem meio filosofia!”, redarguiu, sardónico, o próximo futuro sargento. E, muito filosoficamente: “Já alguém viu que coisas daquelas e filosofia se casassem bem!?...”.
Tudo casos tipificados. Todos, excepto ela.
Chegou assim tardiamente, quando as noites de Novembro perdiam aquela moderação cálida do Outono meridional e o rio contíguo respirava uma aragem fresca que impunha os primeiros resguardos. Chegou e sentou-se na fila da frente, sobrepondo-se com alarde à sornidão dos rapazelhos que buscavam nos fundos refúgio de mândria e expediente de cabulagem, e ao acanhamento dos guardas-fiscais, que eram outra vez meninos nos bancos toscos da escola primária da sua recordação, só que agora mais encabrestados à reverência professoral, reforçada por uma vida de obediência e servilismo, na caserna. E ali se postou ela, muito hirta dentro do seu espampanante casaco branco comprido, imitação duma pele imponderável. Magra, delgada, frágil por cultivada aparência, na palidez do rosto oblongo a pintura destacava a traço grosso o perímetro dos olhos escuros e a boca esbarrotada de bâton; sobre os ombros, contrastando mais a sua feição alvadia, uns cabelos muito pretos e escorridos. – Quem era? Donde vinha?
Ninguém sabia: e a curiosidade dos condiscípulos ardeu a fogo vivo. Hm!... estranha… desconhecida no meio… ave de arribação… Mas logo ela, loquaz e insinuante, atalhou as especulações: vivia em Espanha (na outra margem do rio) e atravessava todos os dias a fronteira para assistir às aulas – esclareceu lépida, melíflua, suavíssima.
Curiosidade acrescida. Pois… de Espanha!? Vermelhusco, o cabo Faustino, que sobrelevava aos restantes e aspirava a sargento – outros tempos esses, em que para cabo não exigiam o sigundo ano! –, torcia o nariz, desconfiado (desconfiar era o seu ofício), a farejar história. Uma pássara daquelas! Hm!... Hm!...
Imperturbável e despachada, ela não se atrapalhou com as reticências que o bisbilhoteiro avançou com mordacidade aperrada. De Espanha, sim senhor! E acrescentou, com incontível ufania na voz em que rolavam modulações castelhanas: “Mio márido é profésor na universidá de lá”.
Aqui, cabo e praças entreolharam sorrisos velhacos. O rapazio, atento e calado, espiava lá detrás, a ver no que aquilo dava. A parceira do lado, mais indulgente, nem que fosse por espontânea solidariedade feminina, facultava-lhe informações, prestava-lhe esclarecimentos, tolerava-lhe uma camaradagem fácil. Outra congénere, decerto mais suspicaz, guardava uma prudente reserva.
“É profésor de filosófia na universidá de lá”. Espremia os lábios fininhos num trejeito de denguice, quando falava. Expunha para diante, sobre o tampo esverdeado da carteira, as mãos alongadas e cor de cera, de dedos esguios, as unhas berrantemente pintalgadas de verniz vermelho; por baixo, apareciam-lhe as pernas torneadas pela meia de seda, e os sapatos pretos, de saltos muito altos. Ao andar, era como se pisasse ovos.
Quem acreditaria? Quem acreditaria que aquela figurinha delicodoce de manequim de loja barata, toda berliques e berloques, com requebros delambidos nas pestanas tesas de rímel e um falajar de sopeira batida e foleirona fosse, nem mais nem menos, a esposa de um professor universitário – e logo de filosofia!? Que diacho, filosofavam cartesianamente os guardas-fiscais bem chefiados pelo subtil cabo Faustino, coisas daquelas e filosofia casavam-se mal!...
Mas ela não mentia. Pouco menos de um mês e o primeiro período chegava ao fim. O Natal à porta, vésperas de festas, tempo de convívio, pois então. Discípulos e mestres, por alvitre dos primeiros, concertaram uma festarola, no último dia de aulas (na última noite, melhor), um convívio simples, claro, mas sempre ameno e saudável – pedagógico, como soe dizer-se. Além do mais, aberto. Que cada um – dizia entusiasmado o cabo, que mesmo ali comandava, a ponto de os subordinados não ousarem nunca pronunciar-se antes dele –, que cada um trouxesse “a famelga” (cada um, salvo seja: ele, cabo, mulherengo veterano, viria sozinho que era para depois se “desenfiar” e acabar a noite nalguma estúrdia, que já a trazia estudada). E, bendita providência!, logo acontecia dois dos guardas-fiscais serem cozinheiros na cantina da corporação. Vinha mesmo a calhar. Preparavam um pitéu…
Assim foi. O contínuo da noite – que era como se fosse da turma, passava as horas de cabeça assomada na porta da sala, ouvindo a lição e fazendo depois, nos intervalos, os seus reparos judiciosos: “Desculpe lá que lhe diga, senhor Faustino, mas aquela sua resposta…” (o cabo irritava-se, repontava) – reuniu as carteiras em grande rectângulo, formando mesa. A D. Ausenda – respeitável mãe-de-família e por isso convenientemente autorizada pelo consorte – prontificou-se a trazer “uma toalhinha e uns guardanapinhos”; os talheres também apareceram, ou alguém os desencantou. E às oito da noite de sexta-feira, dezassete de Dezembro, estava posta a mesa para a ceia pré-natalícia. A sala de aulas, se não tinha o que se poderia chamar um conchego de consoada, apresentava cenografia festiva: “Feliz Natal” escrito a giz amarelo no quadro preto, em caligrafia garrafal e apurada, nas orlas uns enfeites a verde figurando ramagens de pinheiro. Do enorme tacho de rancho que os dois váteis depuseram com esmero no centro da távola improvisada exalava-se um cheirinho insidioso de frango guisado, que fazia o contínuo (como ele gostava daquelas comezainas, o bandido!) dar sonoros estalos de língua no céu da boca. Muitas cadeiras em redor, para os convivas abancarem à vontade.
Ela foi dos primeiros a chegar, apressada, ofegante, aquele sorriso de fotonovela afivelado, muito couraçada de abafos, porém sempre frágil e delicada como flor especiosa. Retirou dum saco bolos, filhós e garrafas de espumante espanhol, material que distribuiu pela mesa com requintes de dona de casa. Diligente e vaporosa, ia dum para outro no seu andar leve e saltitante de passarinho em que os vestidos ruflavam como se fossem asas, dizendo banalidades, fazendo na sua fala cantarolada, eivada de espanholismos, observações simplórias. Quando entrou, fatal e sublime como uma diva, trazia pelo braço um homem.
Era um sujeito que a altura dos saltos dela fazia parecer mais baixo, metido numa canadiana castanha, boina basca na cabeça, cachimbo preso nos dentes, no meio de umas barbas negras e cerradas que lhe davam um semblante algo feroz. Espanhol retinto, de facto. Muito verboso e, desmentindo a primeira impressão das cerdas, muito jovial. Integrou-se de imediato, entabulou conversas, dali a pouco era da tertúlia. Era então aquele o “seu” professor de filosofia!
Estavam conjuradas as viperinas insinuações do cabo Faustino. A turma rendeu-se. Como se fizessem acto de contrição, desfizeram-se em amabilidades com o convidado, que era inegavelmente de trato simples e desprovido de convencionalismos. Em breve trocava amistosas palmadinhas nas costas com o contínuo, este já alegrote por via dumas libações repetidas dum tinto caseiro e trepador de que um dos guardas-fiscais trouxera um garrafãozito “só para provar”. Quando, após o ágape, e como era inevitável pelo andar da carruagem, principiou a sessão de anedotas, o bom do professor de filosofia também contou das dele, com grande profusão de gestos para se fazer entender, e logrou assinalável êxito. O contínuo era-lhe compincha dedicado – “parece que andaram os dois juntos na escola”, rosnou o cabo Faustino – e, sentado ao lado dele, assentava-lhe amiúde umas pancadas sempre afectuosas, porém não já palmadinhas. Da outra banda, ela. Desfeita em sorrisos, atenciosa para todos, quase implorando que provassem do seu bolo, das suas filhós, rindo desmanchadamente das anedotas mais insulsas, acorrendo solícita a encher copos vazios, insistindo…
O das barbas é que era mesmo um companheirão! A certa altura fez uma habilidade que embasbacou a roda. Tomou duma toalha de papel e, dobrando-a destramente, vincou nela um barco: “una fragata”; seguidamente, fazendo-a inclinar a pique, declarou-a “hundida”; depois desatou a cortar o papel – chaminé, popa, proa – até que, desdobrando os despojos, mostrou à assistência enlevada “el camisón del capitán”! Todos elogiaram em uníssono, entusiasmados. O contínuo reforçou as pranchadas nos costados do artista. Ela, rubra de prazer, atirou para trás a cabeça, bateu com as mãozinhas quase transparentes uns aplausos frenéticos. Impava de orgulho pelo sucesso do seu professor de filosofia.
Mas ele tinha decerto preocupações mais ponderosas do que a prestidigitação. Dali a pouco, com a mesa já arredada para dar espaço e enquanto um gira-discos fanhoso golfava uma música incerta, confessou à puridade que estava assoberbado de trabalho. Preparava tese de doutoramento, que versava sobre Gabriel Marcel, mas a bibliografia escasseava; outrossim o dinheiro, pois a magra bolsa mal dava para umas surtidas de privação a França, para fotocopiar documentos inéditos. Agora no meio da sala, projectando em vibrações sincopadas o corpo flexível, ela ensaiava uma dança de rock com o contínuo avinhado, trôpego, oscilando grotescamente como um boneco desarticulado. Por mais de uma vez sorriu timidamente para o marido, deitando-lhe uns olhares de soslaio que dir-se-ia pedidos de desculpa pelo atrevimento… De pé, tranquilo, ele contemplava e cofiava a grenha da cara.
Passou-se em beleza aquele festivo encerramento do primeiro período escolar. Sucederam-se os quinze dias de férias, após o que as aulas recomeçaram. Sempre muito senhorita, ela voltou a ocupar o seu lugar na fila da frente. Agora, porém, um tanto irregularmente: pelos menos duas noites por semana não comparecia. Justificou-se com algum atabalhoamento, arguindo que “mio márido” andava muito ocupado e não a podia trazer nesses dias (eles costumavam atravessar a fronteira numa camioneta-caravana, em que pernoitavam). E acrescentava, ciciando as palavras e com os olhos rasos duma água azulada que de imediato lhe borrava a maquilhagem carregada: “Eu também queria ser professora! A ver se consigo ser professora! Queria tanto ser professora!”. E num derradeiro arranco, que era já desespero: “Alguma vez serei professora?”.
Nunca seria, era certo. O seu nível de conhecimentos era rudimentaríssimo, rasava mal o a-b-c. Dava erros de ortografia monumentais e o seu espírito, demasiado terreno, recusava as abstracções mais elementares. Aplicava-se muito, mas assimilava as matérias como uma daquelas máquinas debulhadoras que retêm o grão e rejeitam a casca, só que nela o mecanismo funcionava às avessas: fixava as palavras e deitava fora as ideias…
Foi espaçando as presenças; vinha quando vinha, semana sim semana não; ia o segundo período quase no termo deixou definitivamente de aparecer. Durante muito tempo nada se soube dela. Todos, aliás, absortos nas aflições finais, pareceram esquecê-la. Até que o cabo Faustino, que nunca dava um caso por encerrado antes de se convencer – por isso mesmo trepara àquele posto e estava prestes a ascender a sargento – informou imprevistamente que a vira “uma tarde destas” entrando para um carro junto com um tipo.
“O das barbas?”, inquiriram os outros. “O professor de filosofia?”.
“Qual filosofia nem meio filosofia!”, redarguiu, sardónico, o próximo futuro sargento. E, muito filosoficamente: “Já alguém viu que coisas daquelas e filosofia se casassem bem!?...”.
(1982)
escrito por António Rosa Mendes
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