Para não esquecer...

FELLINI E O NEO-REALISMO

Fellini-La StradaA 31 de Outubro de 1993

[faz hoje 13 anos]
o coração de Fellini roubava-o ao número dos vivos. Na edição de 6 de Novembro do mesmo ano da Revista do Expresso, um punhado de portugueses ligados ao cinema prestavam a sua homenagem ao realizador italiano. Manuel Cintra Ferreira escreveu À espera dos palhaços:
NA ALTURA da sua estreia, em 1954, A Estrada
(o filme que trouxe a consagração internacional a Federico Fellini)
foi alvo de acesa polémica. Os meios católicos celebravam a parábola cristã que viam no drama de Zampanò e Gelsomina, enquanto entre os marxistas o filme era considerado como uma ruptura
(se não mesmo um ataque)
aos princípios do neo-realismo, o novo cinema que nascera em Itália no fim da guerra, que em princípio deveria ser um retrato «realista» da sociedade, dos seus conflitos, da exploração dos mais desfavorecidos e da luta de classes. O filme de Fellini rompia com a unicidade «decretada» pelos ideólogos do movimento, numa reacção típica de quando se sente um movimento fugir ao controle.


Ora, o neo-realismo nascera principalmente das dificuldades económicas com que a indústria do cinema italiano se defrontava no pós-guerra e não de qualquer manifesto, dando origem a muitos equívocos e a reacções agressivas quando os autores revelados nesse tempo procuraram novos caminhos logo que dispuseram de outros meios. O neo-realismo não foi mais do que uma etapa do cinema italiano e na carreira dos seus mais celebrados realizadores. Aliás, tal fuga aos cânones neo-realistas já se verificara dois anos antes de A Estrada, quando um dos seus chefes de fila, Vittorio de Sica, fez O Milagre de Milão, outra parábola que levava no final os pobres para o paraíso, assim escapando à exploração.

MAS AS ACUSAÇÕES de fuga ao «movimento» tinham a sua razão de ser. O neo-realismo era um espartilho que o cineasta procurava romper; nele não cabia a visão onírica e excessiva que Fellini tinha do mundo, esse gigantesco circo que o realizador celebraria a partir de A Doce Vida, em 1960. Pouco antes de A Estrada, Fellini participou num filme colectivo, Retalhos da Vida, ao lado de Antonioni, Alberto Lattuada, Cario Lizzani, Dino Risi e Francesco Maselli, à volta do teórico do movimento Cesare Zavattini, que queria fazer do projecto um manifesto tardio, num momento em que começava a dispersão e se impunha a comédia de costumes com Pão, Amor e Fantasia, de Luigi Comencini. Os sinais de ruptura evidenciavam-se no desequilíbrio do resultado, com Antonioni e Fellini opondo-se nos seus «sketches» ao «diktat». O primeiro através do refinamento estético, com os elaborados movimentos de câmara e os longos planos que se vão impor a partir de A Aventura, o segundo pela distanciação irónica do assunto
(uma «reportagem» à volta de uma agência matrimonial)
e a criação de um clima poético em volta dos personagens. E o próprio personagem do jornalista antecipa já o de A Doce Vida, sendo Antonio Cifariello, o intérprete, o primeiro «alter ego» de Fellini.


Também As Noites de Cabíria, de 1956, consumação da ruptura
(se tal fosse necessária)
tem a sua origem muito atrás, na fase de ouro do neo-realismo, no episódio que Fellini escreveu e interpretou
(e de que foi, também, assistente de realização)
em L' Amore, de Rossellini:
Il Miracolo. Aliás, a primeira proposta de Fellini para o episódio foi a história de Cabíria, personagem que incluirá, como secundária, no argumento de O Sheik Branco, antes de fazer dela uma das suas mais míticas criações, sendo em ambos os casos interpretada pela sua esposa, Giulietta Masina.

PARA FELLINI o neo-realismo foi uma etapa que lhe permitiu, a pouco e pouco, encontrar-se consigo próprio, fazendo emergir uma personalidade original e controversa, a que ninguém ficou indiferente, quer goste ou não dos seus filmes. E essa prática foi levada a cabo principalmente pela escrita, na colaboração de vários argumentos, depois de Roberto Rossellini o ter convidado para colaborar num documentário sobre o fuzilamento do padre D. Morosini pelos fascistas. O documentário passaria a filme de ficção e tornar-se-ia o estandarte do movimento que nascia: Roma, Cidade Aberta (1945). O jovem caricaturista e jornalista, cujos contactos com o cinema se tinham limitado à criação de «gags» para um cómico popular, Macário, deixava, assim, o seu nome ligado à aparição do neo-realismo, o que talvez seja a raiz dos equívocos.

Fellini, até ao fim da década de 40
(no fim de contas a grande fase do movimento)
vai continuar na mesma via, mas com algumas resistências
(o referido Il Miracolo),
assinando, em colaboração com outros argumentistas, alguns dos filmes mais famosos do neo-realismo e do cinema italiano daquele tempo. Colabora com Rossellini em Libertação
(filme em 6 episódios sobre a libertação de Itália),
L' Amore, São Francisco, o Santo dos Pobrezinhos e Europa 51. Os dois últimos são particularmente importantes porque muito do Fellini dos anos 50 se encontra ali já de corpo inteiro
(a parábola cristã, a redenção pela fé e a sua manifestação suprema, o milagre, temas que percorrem A Estrada, As Noites de Cabíria e O Conto do Vigário).
É co-autor, também, dos argumentos de filmes de outros dois nomes conhecidos do neo-realismo, Alberto Lattuada e Pietro Germi. Com o último colabora em Em Nome da Lei, O Caminho da Esperança, O Bandido da Cova do Lobo e A Cidade Defende-se, trabalhos sem marca pessoal, em que a sua participação se confunde no colectivo. Já com Lattuada o caso é diferente, mais próximo do seu papel ao lado de Rossellini. O retrato de Carla del Poggio em Sem Piedade e o de Giovanni Episcopo em A História do Meu Crime, anunciam os seres frágeis e mortificados de Noites de Cabíria e O Conto do Vigário.

E com Lattuada iria Fellini estrear-se como realizador, no filme que fizeram a duo: Luci dei Varietà (1950), onde o «peso» do autor de Oito e Meio se impõe sem contestação sobre o trabalho de Lattuada, tratando, aliás, de um tema caro a Fellini: os artistas ambulantes de variedades percorrendo as pequenas povoações. Aí surgem as sementes de A Estrada, um universo que Fellini reveria e actualizaria de forma mais amarga, já nos anos 80, em Ginger e Fred, e onde se afirmam já outros delírios futuros do realizador: a fabulosa festa na mansão que prefigura a orgia de A Doce Vida. Fellini começa a despojar-se das referências neo-realistas e cada filme abre novas perspectivas para o seu trabalho futuro: Os Inúteis, um prólogo à Doce Vida, Cabíria sofisticada em Julieta dos Espíritos, o mundo dos saltimbancos de A Estrada anunciando Os Clowns.
escrito por ai.valhamedeus

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