Para não esquecer...

EX-CITAÇÕES *32a. futebol e linguagem

Quando ouço falar em "ideais desportivos", ou anunciar a criação de comissões que investigarão a corrupção no desporto, ou debater a questão da ética no futebol,... rio

[como diz a canção, rio para não chorar].
Quem "os" ouve até há-de pensar que estamos em domínios decentes... Como se o reino do desporto profissional não se alicerçasse em bases que com a ética têm relações não mais do que mínimas. A começar pela linguagem.
A gíria desportiva aponta, antes de mais, para o irracionalismo e para a fantasmagoria belicista. Num e noutro caso se exploram «valores» profundamente enraizados na memória colectiva, ligados à Religião e à História. O jogador desfere um «tiro» à entrada da área, ou à «queima-roupa», «invade» o terreno do adversário, «bombardeia» a grande-área; a equipa perdeu a «capacidade de manobra» no meio-campo. A palavra reclama-se aqui de uma dimensão paramilitar associada à ideia de «vitória» e «derrota». O «contra-ataque mortífero» numa táctica de ferrolho cria uma relação analógica com os «orgulhosamente sós», defendendo-se dos ataques do exterior, e os desaires internacionais são tomados por «vitórias morais», indispensáveis à imagem pública do nacionalismo invencível. Somos no geral «fisicamente inferiores», perante equipas de «boa estampa atlética», mas tecnicamente somos os melhores. Se conseguimos um 3.° lugar no Mundial, como em 66, logo aparece quem venha associar o brilharete a uma virtude da raça (David Sequerra). A teologia mística abre tenda no «desporto das multidões» praticado num país «tradicionalmente católico». Não espanta que se recorra ao referente sobrenatural para evocar obscuros poderes (o «Inferno da Luz») ou de imponência messiânica (Wembley: a «catedral» do futebol). O sado-masoquismo também está presente numa expressão tão sugestiva como «chicotada psicológica».

[Júlio CONRADO - Ou vice-versa : mitos de trazer por casa. [s.l.] : A Regra do Jogo, 1980, p. 99-100]
escrito por ai.valhamedeus

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