Para não esquecer...

POIS!... [estórias exemplares] -16- A GAIVOTA

Deambulando pela praia, o meu olhar foi atraído para o céu por cima da minha cabeça, ao invés de se ocupar do sítio onde punha os pés, para não ser surpreendida pelos dejectos dos inúmeros (e lindos) cães que se cruzam no nosso caminho, correndo doidos no areal, livres da trela dos donos.

Talvez tenha sido sempre assim, mas naquele fim de manhã serena e azul, o céu pareceu-me pejado de tráfego aéreo, tracejando-o de riscos brancos finíssimos, como se fora com a ajuda de régua e tiralinhas, pesadelo da minha adolescência aprisionada.

Parecia milagre que o entrecruzar de tanta tecnologia, prateada pelo reflexo do sol, não provocasse acidentes fatais nas planuras longínquas do firmamento.

Depois os traços perfeitos começavam a esborratar como chantilly em bolo de fim de festa. Ou desenhos geométricos arruinados pelo tremer da mão ansiosa da minha perdição.

Cansada da observação, e com dores no pescoço, trouxe o olhar cá para baixo, para o campo de visão dos pés, pouco assentes no chão de areia insegura. E vi, claramente vista, uma gaivota jovem (pareceu-me) a preparar conscienciosamente um pequeno peixe, antevendo já o prazer de o deglutir. Veloz, voando do nada, outra gaivota mais velha (afigurou-se-me) em voo picado, aterrou quase em cima da jovem e inexperiente, arrebatando-lhe o almoço, com uma perícia exemplar, e sem cerimónias. A outra nem tempo teve para saber o que lhe estava a acontecer, quanto mais para defender a presa! Ficou-se por ali a remoer o despeito e de papo a dar horas.
Logo outra, da mesma faixa etária, creio, se lhe juntou, solidária. Quedaram-se, amigas, um bom bocado. Quase podia ouvi-la segredar: “ Deixa lá, não fiques triste. Aquela sempre foi assim: uma invejosa e garganeira. Uma calaceira, sempre à espreita, à espera de fisgar o que é dos outros”.

A tentativa de consolo deve ter resultado, pois daí a nada levantaram voo em simultâneo, zarpando a plagas de competição menos feroz.

A que se abarbatara com o peixe alheio ali ficou e, sem competidores, preparou o alimento com cuidados e técnicas ancestrais: com bicadas enérgicas, virando-o ora de um lado, ora do outro, qual cozinheiro escarmentado. Após tratamento adequado e escrupuloso, deu o trabalho por terminado, engolindo o peixe de uma só vez.

De papo literalmente cheio, voou para longe, quiçá à procura de nova presa para mais tarde deglutir.

P.S. Os nutricionistas conscienciosos e preocupados com os nossos estômagos, aconselham-nos a mastigar os alimentos, pelo menos 400 vezes!!

Pois, … é pedir muito.

escrito por Gabriela Correia, Faro

0 comentário(s). Ler/reagir: