Para não esquecer...

POIS!... [estórias exemplares] -17- O MEU VIZINHO BARBEIRO

Tive um vizinho, durante todo o tempo que vivi naquela casa onde nasci, que era barbeiro, carpinteiro e agricultor. Era uma pessoa sui generis. Vivia perto de duas tabernas, mas nunca o vi beber um sumol sequer. Era poupado, reservado e pouco dado a conversas, apesar de ser barbeiro. O Joaquim dos Reis

(era assim conhecido, sem Sr. nem nada),
não era dado a grandes filosofias nem a tiradas sonantes. Cortava o cabelo, falava de coisas triviais, dava uma mirada à rua pelo canto do olho, entre duas tesouradas, e levava uma vida modesta com a sua Ermelinda. Tinha a oficina numa divisão ainda mais modesta da sua casa, e o salão, amplo, logo à entrada. À esquerda do salão tinha os aposentos reservados para ele, a sua Ermelinda e a filha. A casa tinha um quintal modesto, com duas ou três árvores e cisterna de água. Maravilhosa água que todos invejávamos. É que na minha aldeia não havia água potável, nem em poços. Mas o Joaquim dos Reis tinha a sua cisterna, com água fresca que nos provocava. Nem pensar em pedir-lhe fosse o que fosse.

O Joaquim dos Reis viveu assim desde que o conheci. Há mais de cinquenta anos. A filha, a Felisbela, apesar de mais velha, era a pessoa com quem eu brincava. Brincadeiras inocentes, é bem de ver. Naquele tempo a vida estava para além da minha terra.

O Joaquim dos Reis organizava umas excursões, altura em que ia à minha casa fazer telefonemas para a “à viária”. Coisa que acontecia uma vez por ano. Nunca foi a casa de ninguém, estou em crer, nem ninguém foi a sua casa
(coisa frequente no Algarve litoral).
O homem da casa, era ele que fazia as compras. Era sabido que, no Verão, sempre comprava quatro sardinhas, duas para ele, uma para a mulher e outra para a filha.

Um dia, tinha eu uns seis anos, vi o Joaquim dos Reis a encher uma garrafa grande de granizo, do algeroz, empoleirado em uma escada, no quintal. Tinha chovido e ele queria preservar aquele fenómeno para mostrar ao futuro.

Soube que a Ermelinda terá morrido há dois meses, o Joaquim dos Reis foi a seguir. Discreto, silencioso, como sempre vivera. Não resistiu à ida da sua Ermelinda.

escrito por Carlos M. E. Lopes

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