Para não esquecer...

AOS NOVOS ADVOGADOS

Meus Caros Colegas e amigos:

O Conselho Distrital de Faro da nossa Ordem facultou-me o uso da palavra para, nesta solenidade, apresentar, aos novos advogados, as boas vindas de ingresso na Profissão e na Ordem.

Sabemos dar bons conselhos quando já não podemos dar maus exemplos. Por que não sou, nem pretendo ser, reconhecido pela eloquência, foi, decerto, por esta faceta da impotência dos maus exemplos que a Ordem dos Advogados me indigitou para lhes dar os bons conselhos.

Se os novos colegas elegeram este meio de vida para colher, comodamente, os frutos da árvore das patacas com um ligeiro abano de mão, entraram no ofício errado.

A este propósito, permito-me referir um caso, em que intervim, de um pastor que serviu um mês na casa de patrão e reclamava o pagamento de 496 horas de trabalho extraordinário. Na tentativa de conciliação prévia, o delegado do Tribunal de Trabalho, que patrocinava o pastor, ponderando que aquele tempo de trabalho extraordinário acrescido do de trabalho ordinário, cujo pagamento já lhe fora feito, perfazia, exactamente, a duração de todo o mês, indagou-lhe se ele, durante esse tempo, não dormira, ao que o pegureiro respondeu que dormira, sim, mas que o fazia com a ovelha-guia presa, através de uma guita, a um dos seus pés, de forma a poder acordar à ocorrência de qualquer anormalidade, assim permanecendo, continua e ininterruptamente, de serviço.

O advogado tem, exactamente, o mesmo fadário do ganhão da história: quer ele queira, quer não queira, conquanto não leve a ovelha do lavrador atada à perna, leva sempre o caso bicudo do cliente colado à mente, como uma lapa, para onde quer que o destino o conduza.

Se os novos colegas elegeram este meio de vida para integrarem uma classe com boa fama, entraram no ofício errado.

A má reputação do advogado é universal e intemporal, o que não significa que seja invariavelmente, justa.

Não irei reproduzir o que já escrevi e que os novos advogados, a contra-gosto, tiveram de ler. Mas gostaria de ilustrar a afirmação com ditos e provérbios que definem a concepção que a grei, tradicionalmente, tem do advogado.

Começo pelo Voltaire, no ponto em que, a propósito do seu advogado, dizia que, na vida, tinha ido duas vezes à falência: uma, quando perdeu uma causa e a outra quando a ganhou;

Continuo com a expressão do conselho dado por um avô ao respectivo neto: Se, numa rua, fores bloqueado por uma quadrilha de ladrões, de uma banda, e por um advogado na desembocadura oposta, tenta fugir pelo lado dos ladrões, que, do outro, não tens hipótese de escapar.

Em matéria de provérbios humilhantes, eles são tantos que não têm conto. Invoco alguns:
Rodas e advogados não andam sem ser untados;
No meio é que está a virtude, disse o diabo quando se sentou entre dois advogados;
Se queres ser despojado vai à cata do letrado;
Na banca do advogado, tanto se paga de pé, como se paga sentado.
Neste vezo para vítimas do achincalho social, tradicionalmente, o advogado só emparelhou com o cigano e com o frade — boa companhia! De há poucos anos a esta parte, foi ultrapassado pelo político e pelo agente desportivo, estes com menos trabalho e mais proveito.

Se os novos colegas escolheram este meio de vida como um arrimo sólido, em que se pode apoiar para viver em paz consigo e com os outros, entraram no ofício enganado.

A forense é uma profissão geradora de lutas, de incompreensões e de malevolências. O advogado é o alvo predilecto do estoque de clientes, de contrapartes, de juízes, de funcionários, de Promotores, de Colegas. Está, eternamente, de mal com Deus e com o Diabo, numa palavra.
Cada processo constitui uma fonte de inimizades:
Se ganha a acção, ganha um inimigo — a contraparte;
Se a perde, ganha dois inimigos — o cliente e o seu adversário.
Invoco, aqui, uma história, mais uma, agora de um falecido médico, para ilustrar o que acontece na profissão forense. Trata-se de um desabafo ouvido ao abespinhado dr. Rocheta Cassiano:
Grandes cabras! Se o marido morre, a causa é a besta do médico, se o marido se cura, a causa é a Nossa Senhora de Fátima!
Com o advogado sucede, exactamente, o mesmo:
Se o cliente tem ganho de causa, é porque tinha esse direito, por ser dono da razão;
Se o cliente perde o pleito, a culpa é do cavalo do advogado, que não o soube defender.
Se os novos colegas escolheram este meio de vida como um opção de existência remansosa e despreocupada, assente na máxima de que o advogado nunca perde a acção, qualquer que seja o resultado dela, entraram no ofício enganado.

É certo que a acção é do cliente, mas quem tem de conduzir a defesa dos seus interesses processuais, é o advogado. Quem tem de debitar ciência, no tempo e lugar cominados, é o advogado e às vezes, só este.

Por exemplo, a Lei comina prazos de cumprimento a todos os agentes processuais. Mas o único que os tem de cumprir é o profissional forense.

A este propósito ocorre-me a invocação de um passo da vida daquele que foi, de facto, o meu patrono, o saudoso dr. Joaquim Rita da Palma. Contava-me ele (e chegou a escrevê-lo) que na noite do velório do cadáver da sua mãe (na casa de residência, como, então, se usava) teve de minutar, à pena, por não possuir máquina dactilográfica, umas alegações processuais, cujo prazo terminava no dia seguinte.

Minutou-as a chorar, de tal forma que a escrita saiu quase ilegível, de borrada que ficou, pelas lágrimas. Mas teve de as fazer, nos mesmos termos em que o palhaço tem de gargalhar no dia em que lhe morreu o filho.

E aqui têm os novos colegas uma descolorida amostra do que é a carreira profissional a que acabaram de aderir. Por tudo isto, do coração lhes digo:
Deus Nosso Senhor os proteja.
Neste ponto da perlenga, cumpre reflectir que, se alguém a levou a sério, estará a ponderar se terá valido a pena ter sacrificado tempo e esportulado cabedais para cair neste vespereiro.

Para quem tenha espírito de inconformismo, indubitavelmente, que valeu a pena.

Valeu a pena pela autonomia que a profissão confere: O advogado tem a liberdade do cão vadio, sem coleira, nem trela, que ladra, sem constrangimentos, sempre que lhe apetece ladrar e a quem reputa que deve ladrar.

Na frase lapidar de Henrion Pensey,
o advogado, sem escravo e sem dono, seria o Homem, na sua dignidade original, se um tal Homem ainda existisse.
Pela independência de que goza e que constitui o principal pressuposto da profissão, o advogado representa o residual dos livres pensadores dos enciclopedistas do século XVIII. Livre pensador, em especial, se for o homem descomprometido, sem mulher e sem sogra, que lhe aperreiem o pensamento — ou, no caso da advogada, sem marido e sem filho.

O advogado é o desalinhado, o contra-poder, aquele que tem o direito (e o dever) de dizer não a todos os constrangimentos, sejam eles de natureza política, social, económica, ou religiosa.

E valeu a pena pela função social que o advogado desempenha. Ele
é o apoio da inocência e o açoite do delito,
tirou Robespierre da sua cabeça antes de lha cortarem. O advogado é a única pessoa que nos chega ao pé quando todas as outras nos fogem. E, nos tempos modernos em que as condenações revestem a forma jornalística e são tomadas na praça pública, é muito vulgar não termos mais ninguém que nos chegue ao pé, quando mais carecemos de dar voz, mesmo isolada, pela nossa inocência.

Vou terminar o falejo. Mas não quero fazê-lo sem lhes lembrar o que, por diversas vezes, lhes disse: Nunca se esqueçam que a nossa missão, primeira, é a de ajudar a realizar a Justiça e que um injusto ganho de causa pode trazer, pontualmente, um prazer pessoal, mas constitui sempre, um mal social. Uma vitória dessas há-de configurar-se, em cada caso, como uma derrota, no espírito de um advogado consciente da sua missão profissional.

Nos fins do século I, Cornelius Tácito afirmou que
nenhuma mercadoria pública foi tão venal como a perfídia dos advogados.
Tivemos mil e novecentos anos para apagar a imagem que o Tácito deixou de nós. A partir da quadra rimada de António Aleixo que reza:
Alheio ao significado
Diz o Povo e com razão
Ao ouvir um grande aldrabão
Dava um bom advogado
,
podemos inferir que até meados do século passado não tínhamos invertido a representação do Tácito. Será que o fizemos nos últimos cinquenta anos?

E mais não digo, que o Céu me entende.

escrito por Valério Bexiga [e dito na cerimónia da entrega das cédulas profissionais a novos advogados, a 28/Fev/2007, na sala de audiências do Tribunal de Família e de menores de Faro]

9 comentário(s). Ler/reagir:

Anónimo disse...

Faltou uma adivinha:
Por que um grupo de tubarões não comeu um advogado que caiu ao mar?
Resposta:
Por defeferência com um colega.

Anónimo disse...

GRANDA SECA
É preciso ter uma grande bexiga para não se mijar a ler(e ouvir) isto!

Anónimo disse...

Peça brilhante.
Digo mais, digna de se encaixilhar e ficar dependurada em local de honra de uma qualquer parede que tanto pode ser de um escritório ou de uma sala de audiências ou qualquer outra parede pública.
Quem maneja com tanta elegãncia as palavras e sabe colorir assim as ideias, merece que se lhe tire o chapéu.
Obrigado por esta feliz transcrição da oração de sapiência forense do ilustre Dr. Valério Bexiga.

Anónimo disse...

Ora aqui estão dois comentários que não parecendo a V. Exa. o que são, são aquilo que lhe parecem: iguais.
O da Vic vai direito à baliza. Talvez porque no antigamente os garotos jogavam à bola com uma bexiga de porco e agora os porcos jogam com uma bexiga de dólares. Ao seu comentário falta-lhe, como é evidente, a elegância da linguagem e a finura satírica do Zé do Al margem direita.
Ambos merecem um caixilho. Aplauso.

Anónimo disse...

Para o ilustre "observador"

Sei que pareço um ladrão...
mas há muitos que eu conheço
que, não parecendo o que são,
são aquilo que eu pareço.

António Aleixo

Como bem sabe, direita e esquerda, são conceitos muito relativos.
Então em termos geográficos nem se fala.
A mesma margem muda de direcção consoante o "observador" esteja virado para "montante" ou para "juzante".

Um bom fim de semana

Padre Lúcio disse...

Carissimos
Falha grave empobrece tão grandioso discurso.
Perante tanta eloquência e sabedoria é triste não ver uma referência ao padroeiro de tão distinta classe, Santo Ivo.
Continuação de um Santo Domingo.

Anónimo disse...

Bem observado: Santo Ivo a «montante» e o padre lúcio a «juzante». Obviamente, um à esquerda e o outro à direita, não importa de que margem os mire, Zé.

Anónimo disse...

Por acaso a China é o maior depósito de US$ DO Mundo!
Porque tratam os operários pior k porcos, k parece ser do agrado do observador(!).
Era lá k tu gostavas de estar, não era?Ficavas entre irmãos.

Anónimo disse...

Observado e confirmado, Sra. Beckam: «falta-lhe a elegância da linguagem e a finura satírica do Zé do Almargem».
O que a natureza não dá, o dunheiro não resolve.