[Livre arbítrio é]
A liberdade da vontade, na medida em que ela seria absoluta ou indeterminada: é “o poder de se determinar a si próprio sem ser determinado por nada” (Marcel Conche, L’aléatoire, V, 7). Poder misterioso, e estritamente metafísico: se fosse possível explicá-lo (através de causas) ou conhecê-lo (através de uma ciência), não mais seria livre. Não se pode acreditar nele sem renunciar a compreendê-lo, ou compreendê-lo (como ilusão) sem renunciar a acreditar nele. É aqui que é preciso escolher entre Descartes e Spinoza, entre Alain e Freud, entre o existencialismo, em particular o sartriano, e aquilo a que chamei, à falta de melhor, o insistancialismo – entre o livre arbítrio e a libertação.[André Comte-Sponville - Dictionnaire philosophique. Paris : PUF, 2001, verbete Libre arbitre. Tradução de Ai.valhamedeus]
Não se confunda o livre arbítrio com a indeterminação: um electrão, mesmo supondo-o absolutamente indeterminado, apesar de tudo não está dotado de livre arbítrio, que supõe uma vontade, tal como um cérebro que dependesse de partículas indeterminadas também não seria por isso livre (já que ele depende de outra coisa que não ele próprio). O livre arbítrio também não é a espontaneidade do querer, que seria antes – como se encontra em Lucrécio ou os estóicos – o poder determinado de se determinar a si próprio. No entanto, recebe qualquer coisa de uma e de outra: é uma espontaneidade indeterminada, que teria, é o seu próprio mistério, a faculdade de se escolher ou de se criar a si, o que supõe – já que se não pode escolher senão o futuro – que ela se precede inexplicavelmente a ela própria (o mito de Er em Platão, o carácter inteligível em Kant, o projecto original ou a existência-que-precede-a-essência em Sartre). Não é o que eu sou que explicaria as minhas escolhas; são as minhas escolhas, ou uma escolha original, que explicariam o que eu sou. De início eu não seria nada; e é este nada que escolheria livremente o que eu tenho que ser e que eu terei sido. “Cada pessoa, escreve Sartre em O ser e o nada, é uma escolha absoluta de si”. O livre arbítrio é esta escolha, ou antes (já que é preciso ser primeiro para se escolher) esta impossibilidade.
[Ler o texto original, em francês]
escrito por ai.valhamedeus
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Para confronto com a tradução, publico o texto original (em francês):
LIBRE ARBITRE La liberté de la volonté, en tant qu'elle serait absolue ou indéterminée : c'est « le pouvoir de se déterminer soi-même sans être déterminé par rien » (Marcel Conche, L'aléatoire, V, 7). Pouvoir mystérieux, et métaphysique strictement : si on pouvait l'expliquer (par des causes) ou le connaître (par une science), il ne serait plus libre. On ne peut y croire qu'en renonçant à le comprendre, ou le comprendre (comme illusion) qu'en cessant d'y croire. C'est où il faut choisir entre Descartes et Spinoza, entre Alain et Freud, entre l'existentialisme, spécialement sartrien, et ce que j'ai appelé, faute de mieux, insistantialisme — entre le libre arbitre et la libération.
On ne confondra pas le libre arbitre avec l'indétermination : un électron, même à le supposer absolument indéterminé, n'est pas doué pour autant de libre arbitre (qui suppose une volonté), pas plus qu'un cerveau qui dépendrait de particules indéterminées ne serait libre pour cela (puisqu'il dépend d'autre chose que de lui-même). Le libre arbitre n'est pas non plus la spontanéité du vouloir, qui serait plutôt — comme on voit chez Lucrèce ou les stoïciens — le pouvoir déterminé de se déterminer soi-même. Mais il emprunte quelque chose à l'une et l'autre : il est une spontanéité indéterminée, qui aurait, c'est son mystère propre, la faculté de se choisir ou de se créer soi, ce qui suppose — puisqu'on ne peut choisir que l'avenir — qu'elle se précède inexplicablement elle-même (le mythe d'Er chez Platon, le caractère intelligible chez Kant, le projet originel ou l'existence-qui-précède-l'essence chez Sartre). Ce n'est pas ce que je suis qui expliquerait mes choix ; ce sont mes choix, ou un choix originel, qui expliqueraient ce que je suis. Je ne serais d'abord rien ; et c'est ce néant qui choisirait librement ce que j'ai à être et que j'aurai été. « Chaque personne, écrit Sartre dans L'être et le néant, est un choix absolu de soi. » Le libre arbitre est ce choix, ou plutôt (puisqu'il faut être d'abord pour se choisir) cette impossibilité.
Acho o texto muitíssimo bom! Recebi e-mail da ARTE DE PENSAR e eu, como aluna, vim dar a minha opinião.
estou no 10º ano e foi-me leccionada essa matéria no 1º período. O texto está absolutamente acessível! Aliás, li textos muito mais complexos que este.
O facto de os aluno não procurarem este tipo de textos, residirá talvez no facto de a Filosofia estar esperiotipada como sendo, o que vulgarmente chamamos, "uma seca".
Mas quanto ao texto, volto a repetir, não há qualquer dificuldade de interpretação.
Ola viva !
Não sou filósofa, sou aprendiz, embora na Universidade. Francamente, se os seus alunos de 10º ano entendem este texto e leram Platão, Kant, Sartre, Lucrecio e os estóicos e conhecem a diferença entre o Descartes e Espinosa sobre o assunto ... parabéns, são génios.
E, sobretudo, com tanta citação e tanta nebulosidade na exposição, será que o texto os esclarece em algo ? A mim não. E o pior de tudo é que até faz perder o gosto por estudar o assunto. E um professor tem que ensinar a gostar e não o contrário.
Desculpe :( a sinceridade !
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