Para não esquecer...

NOS 400 ANOS DE ANTÓNIO VIEIRA: OS SÁTRAPAS

Padre António VieiraNos 400 anos celebrativos do nascimento do Padre António Vieira

(6 de Fevereiro de 1608),
recolhemos do “Sermão do Bom Ladrão”
(Lisboa, Igreja da Misericórdia, 1655),
a prosa que, não fora o arcaísmo do “Imperador da Língua Portuguesa” e o inevitável latim, bem podia figurar em qualquer jornal diário, até como editorial! Tanto tempo depois, os genes (?!) continuam a sua fulgurante viagem no rincão luso. Deo Gratias!
[…] Dicuntur Satrapae quasi satis rapientes, quia solent bona inferiorum rapere. Chamam-se Sátrapas, porque costumam roubar assaz. E este assaz é o que especificou melhor S. Francisco Xavier, dizendo que conjugam o Verbo Rapio por todos os modos. O que eu posso acrescentar, pela experiência que tenho, é, que não só do Cabo de Boa Esperança para lá, mas também das partes daquém se usa igualmente a mesma conjugação. Conjugam por todos os modos o Verbo Rapio; porque furtam por todos os modos da arte, não falando em outros novos, e exquisitos, que não conheceu Donato, nem Despautério. Tanto que lá chegam, começam a furtar pelo modo Indicativo; porque a primeira informação que pedem aos práticos, é que lhe apontem, e mostrem os caminhos, por onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo Imperativo; porque como têm o mero, e misto império, todo ele aplicam despoticamente às execuções da rapina. Furtam pelo modo Mandativo; porque aceitam quanto lhes mandam; e para que mandem todos, os que não mandam não são aceitos. Furtam pelo modo Optativo; porque desejam quanto lhe parece bem; e gabando as cousas desejadas aos donos delas, por cortesia sem vontade as fazem suas. Furtam pelo modo Conjuntivo; porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito, e basta só que ajuntem a sua graça, para serem quando menos meieiros na ganância. Furtam pelo modo Potencial; porque sem pretexto, nem ceremónia usam de potência. Furtam pelo modo Permissivo; porque permitem que outros furtem, e estes compram as permissões. Furtam pelo modo Infinitivo; porque não tem fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá deixam raízes, em que se vão continuando os furtos. Estes mesmos modos conjugam por todas as Pessoas; porque a primeira pessoa do Verbo é a sua, as segundas os seus criados, e as terceiras, quantas para isso têm indústria, e consciência. Furtam juntamente por todos os tempos; porque do Presente (que é o seu tempo) colhem quanto dá de si o triénio: e para incluírem no presente o Pretérito, e Futuro; do Pretérito desenterram crimes, de que vendem os perdões, e dívidas esquecidas, de que se pagam inteiramente; e do Futuro empenham as rendas, e anticipam os contratos, com que tudo o caído, e não caído lhe vem a cair nas mãos. Finalmente nos mesmos tempos não lhe escapam os Imperfeitos, Perfeitos, Plusquam Perfeitos, e quaisquer outros; porque furtam, furtaram, furtavam, furtariam, e haveriam de furtar mais, se mais houvesse. Em suma que o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo Verbo: a furtar para furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz activa, e as miseráveis Províncias suportado toda a passiva; eles como se tiveram feito grandes serviços, tornam carregados de despojos, e ricos; e elas ficam roubadas, e consumidas.
escrito por Jerónimo Costa

1 comentário(s). Ler/reagir:

pn disse...

dos poucos padres o Padre, Vieira tange uma geo metria discursiva tão vanguardista há 350 anos quanto hoje
ou seja
não mudaram os homens só passaram os tempos

supino rapio...
ad perpetuam rei memoriam...