Para não esquecer...

AMOR E CARIDADEZINHA

Desço a escada, abro a caixa do correio à espera de ver as habituais cartas com contas a pagamento. Um ou outro folheto de publicidade de permeio, a atafulhar e a reduzir o interior já de si tão reduzido. Mas desta vez, oh milagre! Um convite, não “em papel perfumado”. Mas um convite para um baile. Eu não sei se já confessei, mas adoro dançar. Deu-me a alma um pulo e álacre destruí o envelope num ápice, desvendando o mistério. Ora então rezava a missiva que, mediante a quantia de 75 euros, tinha direito a um jantar e baile num sítio chique algures por aí. Em nota cá em baixo advertia-me que deveria usar traje de cerimón$a: vestido comprido, no meu caso. E tudo em nome de uma boa causa. Ajuda a uma instituição de caridade. Fiquei interdita: por um lado era para uma boa causa. Mas eu já tenho uma boa causa – ajudar a minha filha a enricar o senhorio. Por outro lado veio-me à ideia a canção de José Barata Moura e os versos:
Vamos brincar à caridadezinha
Festa, canasta e boa comidinha
Recordei igualmente o conto “Mónica” da Sophia e a sageza do provérbio chinês: Se vires um homem com fome, não lhe dês um peixe, ensina-o a pescar. Recordei o novo conceito de ajuda mediante consulta aos visados, como seja o micro crédito.

E ainda encontrei um 3º lado: o convite era omisso no tocante a par. Imaginem que me calhava um par desirmanado como eu, com um diâmetro à cintura acima da média que nenhum traje formal conseguiria disfarçar? Não. Examinei mais uma vez o convite que, não sei se vos disse, não era “em papel perfumado” e que seguiu o caminho do junk mail que me enche a privacidade da caixa do correio.

E não fui.

Fui sim espreitar o Telejornal.

Prendeu a minha atenção a reportagem “Mães Coragem”, nome emprestado da famosa peça de Brecht onde uma vivandeira tenta sobreviver no vórtice da Guerra dos 30 Anos, que devastou a Europa no séc. xvii. Brecht dá nela voz à “arraia-miúda”, aos que não figuram na gesta histórica, aos que são apanhados nas “malhas que o Império tece”. Pois estas mães coragem tiveram de abandonar o trabalho para se dedicarem de alma e coração aos seus filhos deficientes, sem grandes apoios sociais. Foram apanhadas pelo destino que lhes deformou e transformou em quase vegetais a carne da sua carne. E eu que já fui mãe dum nado-morto, vítima de um destino cruel, fiquei com os olhos marejados. A comoção foi ainda maior ao ver uma mulher com filhos e netos que adoptara uma criança cigana, deficiente e filha de pais toxicodependentes, abandonada por eles com 2 dias de quase–vida. Mais assovacada fiquei ao ouvi-la dizer com naturalidade que o sonho dela é adoptar crianças com SIDA em fase terminal para lhes dar o colo a que têm direito e poder fechar-lhes os olhos para que descansem em paz.

São estes os verdadeiros anjos. E têm sexo.

Por eles, Prof. Rebelo de Sousa, eu poria uma bandeira orgulhosa à janela, na sacada, no carro.

Ainda que made in Taiwan e comprada em Portugal, numa loja chinesa.

escrito por Gabriela Correia, Faro

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