Ontem amanheceu um céu azul e oiro! O que tornou a via-sacra das compras menos dever e mais prazer. O cafezinho da praxe, a frutaria, o mercado do peixe
(já quase deixei de comer carne),
o inevitável supermercado. Ah, e a padaria!
Regressei a casa, ajoujada. Não fora a ajuda do carro e não teria tido ânimo para transportar tanto quilo de compras. O que mais me “mete as costas para dentro” ainda é a arrumação de tudo o que compro. Até parece que tenho “uma casa de família”!! Nem já a gata me vem esperar à porta. Também se foi, vítima da doença dos humanos.
Na atrapalhação de abrir a porta de entrada, tarefa dificultada por falta de mãos e tralha a mais, nem reparava no par junto à floresta de carros estacionados. O que me chamou a atenção foi o som. De alguém a soluçar. Relanceei o olhar, pois pareceu-me reconhecer a vizinha de um dos andares cimeiros. E era mesmo: uma jovem esbelta, no início dos trinta, longos cabelos de um castanho claro, de roupas jovens e muito modernas a valorizar a silhueta. Que inveja!
Ele aparentava ser jovem também, mas a postura era pouco recomendável e a roupa deixava algo a desejar. Ela, serena, de voz baixa, tão baixa que se tornava inaudível. E tal como a voz, mantinha-se no lado inferior do passeio. Ele alterado, muito gesticulante e suplicante, ocupava a parte superior. Mas esta posição não lhe concedia qualquer ascendente sobre a serena rapariga, tão posta em sossego. Pelo contrário. E acreditem, ou não, era ele quem soluçava, gesticulava, pedia encarecidamente. O quê, não sei! Abri a porta o mais rapidamente possível, dadas as circunstâncias, e subi a escada para o elevador perseguida pelos argumentos lamentativos dele. Já em casa ainda ouvi o som choroso que me entrava pela janela aberta.
Liguei o rádio na Antena 2 a fim de que a música clássica me apaziguasse o espírito. Tive pena dele. E eu não gosto de ter pena de ninguém. Não é um sentimento bonito que favoreça o visado.
Mas havia outras razões: é que eu já tinha passado por semelhante situação; humilhante para o suplicante. E não quis rememorar a cena.
Não sei se o mendicante moderno foi atendido na sua súplica. O meu não foi. Ainda que por breves instantes o perdão me tivesse assomado ao espírito. Foi um momento fugaz que teria alterado o meu percurso de vida completamente. O que pesou na decisão longínqua, que afinal recordo, foi a estória, que a minha Mãe sempre contava, da irmã mais nova, de coração terno e idealista, a aceitar de volta o prevaricador que, como era de prever, voltava ao mesmo, esquecida que estava a jura e trejura de emenda. Ela morreu aos 25 anos num hospital do Estado Novo. Nunca se soube a causa. Eram mulheres, e fracas! Mas a minha Avó cortou relações com o prevaricador, e proclamava aos quatro ventos que fora ele o autor moral da morte da filha dilecta.
[Faro, 19 de Outubro. Porque ontem foi Sábado e cumpri o ritual das compras]
escrito por Gabriela Correia, Faro
1 comentário(s). Ler/reagir:
Por uma estória semelhante também eu soluço contigo.
A vida é muito madrasta!!!
Mas temos de ir em frente.
Força
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