Há uns dias sonhei que estava em Atacama. Nunca estive no Chile, mas andava pelo deserto mais árido do mundo com uma frescura invejável e sem sequer sentir sede! E não só: outras pessoas passeavam-se pela sufocante aridez sem qualquer protecção, conversando apressadamente, escrevendo relatórios e preenchendo fichas; ou consultando a NET (banda larga, claro, da SAPO ADSL)…
Havia uma senhora, também, muito sisuda e compenetrada do seu papel, que se encontrava à entrada de Atacama e que distribuía um roteiro a cada visitante, com um daqueles questionários de hotel em que se indica o que gostámos mais e o que nos agradou menos, durante a estadia. E uma grelha, para se preencher no final da visita.
Pois, andava eu encantado pelas ressequidas areias povoadas de “ossos do ofício”, quando uma rabanada de vento me arrancou os papéis da mão, pelo que desatei a correr de um lado para outro, desatinado, a ver se os recuperava. Porém, tal como no suplício de Tântalo, de cada vez que me vergava para apanhar um dos papéis, uma outra aragem fustigava-o para mais longe, convertendo-o em muitos papelinhos. E foi assim que acordei, meio angustiado, a pensar que ainda bem que tudo não passara de um sonho e tentando convencer-me de que aqueles papéis extraviados não teriam uma grande importância.
Logo a seguir, enquanto tomava um duche quente, fui recuperando, a pouco e pouco, a minha qualidade de “pobre, mas docente”. Contudo, na viagem para o trabalho, comecei a questionar a minha noção de responsabilidade, começando a sentir-me “culpado” por nem sequer ter olhado para os ditos documentos. Pensei que se tivesse dormido mais um bocadinho, talvez tivesse encontrado tempo para dar uma vista de olhos por tudo aquilo, estaria agora de consciência tranquila, pelo dever cumprido. Mais uns “minutitos” e poderia ter devolvido os questionários e a grelha à senhora que estava à entrada de Atacama, para que fizesse com a papelada o que lhe passasse pela cabeça. Não gosto de ficar com coisas que me não pertencem. O seu a seu dono, como diz um velho ditado. Uma vez trouxeram-me uma carteira cheia de notas (de banco), que alguém achara em cima de um muro, próximo da minha casa. Mas, como entregá-la à polícia era o mesmo que entregá-la a um dono intermediário, fui divulgando pela vizinhança que estava na posse de uma carteira perdida. Dormia mal, a pensar naqueles papéis todos. Afortunadamente, passados alguns dias apareceu uma vizinha, que logo descreveu a carteira e tudo quanto existia no seu interior.
– Ainda bem que não a levou à polícia – disse-me, na brincadeira, certamente. E mandou-me um cesto de cerejas.
Ora, o grande problema de se sonhar com papéis que não nos pertencem é ficarmos sem saber onde entregá-los. E esse é o problema da Sra. Ministra da Educação, que não pode apresentar-se agora a um governo de oportunidades perdidas, dizendo que está na posse de mais uma oportunidade perdida. Tomá-la-iam por socióloga. Por isso, terá de ficar com o seu sonho, por muito que lhe custe. Eu, ainda tive a sorte de alguém responder afirmativamente à divulgação de uma notícia sobre um objecto perdido, mas parece-me que a Sra. Ministra não terá a mesma alegria. Deve já ter pensado em mil maneiras de se desfazer de um sonho incómodo, como me aconteceu no caso dos questionários e da grelha. Contei esta preocupação a uns colegas, que ainda se riram de mim.
– Se te deram as grelhas, tanto podias preenchê-las como devolvê-las em branco. Esquece isso…
Não consegui explicar-lhes que não era assim tão fácil - as grelhas não eram minhas -, que restaria sempre um complexo de culpa a pairar no vazio. E em chegando ao serviço, quando a minha chefe afirmou que teria de preencher as grelhas de avaliação, porque ninguém me tinha obrigado a concorrer a professor titular, compreendi de repente, que o trabalho docente que desempenho há mais de um quarto de século, também não era meu. Foi o momento em que tudo se iluminou. “Estou a sonhar uma vida que é de outrem”, disse de mim para mim. Estou, (a)final, numa viagem sem retorno, como a Sra. Ministra da Educação. Também não sei a quem devolver uma vida de professor. Já é demasiado tarde e tenho muito sono.
escrito por José Manuel de Azevedo, Prof. com 65 anos, sem reforma à vista, residente em Oliveira de Frades [foto de Jerónimo Costa]
3 comentário(s). Ler/reagir:
Poi Zé. Sessenta e cinco anos de vida e muitos de docência podem não dar uma visão de decência aos míscaros do Ministério, mas deram-te esses anos, esses dias e essas horas lições de clarividência.
Continua pobre e docente,
porque não detém esta luta,
firme, vigorosa e decente,
um qualquer filho da... burrocracia.
Excelente texto, J Manuel. Bendita profissão que tais frutos dá!
J Alberto
O post do Prof. José, sem reforma à vista (já com 65 anos, se calhar terá de aguardar ainda mais 4)fez-me lembrar o poema de António Gedeão
José sobe, sobe a calçada,
sobe e não pode que vai cansado.
Sobe, José, José, sobe,
sobe que sobe sobe a calçada.
Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, José, Joséa, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada.
José era novo,
desenxovalhado,
tinha perna gorda,
bem torneada.
Fervia-lhe o sangue
de afogueado;
saltam-lhe os bofes
na caminhada.
Anda, José. José, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada.
Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas
não dá por nada.
Anda, José, Joséa, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada.
Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a papada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressado;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou a mulher,
viu-a deitada;
serviu-se dele,
não deu por nada.
Anda, José. José, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada.
Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestado;
puxa da filha,
dá-lhe a papa;
veste-se à pressa,
desengonçado;
anda, ciranda,
desaustinado;
range o soalho
a cada passada,
salta para a rua,
corre açodado,
galga o passeio,
desce o passeio,
desce a calçada,
chega à escola
à hora marcada,
puxa que puxa, larga que larga,[x 4]
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa, larga que larga,[x 4]
Regressa a casa
é já noite fechada.
José arqueja
pela calçada.
Anda, José, José, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada, [x 3]
O que diria Rómulo de Carvalho se soubesse de tanto disparate
Diria:
eles não sabem,
nem sonham
que o sonho
comanda a vida!
Gabriela
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