Para não esquecer...

ÁGORA [1] dizer a verdade mentindo

  1. Há dias, o vice-presidente norte-americano em exercício, Dick Cheney, foi questionado sobre o facto de saber se o líder da Al-Qaida estará ainda vivo. Respondeu: 
    "Não sei, mas imagino que sim".
    Esta resposta é perfeita para distinguir 2 conceitos filosóficos: a crença e o conhecimento. Dick Cheney acredita que Bin Laden estará vivo, mas não sabe se Bin Laden estará vivo.

  2. Segundo uma definição tradicional, a crença
    [crer é dar o assentimento a uma proposição]
    é condição necessária ao conhecimento. Necessária mas não suficiente: é ainda necessário que essa crença seja verdadeira. Se Bin Laden estiver morto, jamais Dick Cheney poderá saber que ele está vivo -- ainda que possa estar muito convicto de que o sabe.

  3. Segundo a mesma definição, é necessária uma terceira condição: que essa crença verdadeira esteja justificada. Assim, eu sei que está a nevar porque fui há pouco à janela e deparei-me com o bonito espectáculo.

  4. Portanto, se S designar um qualquer sujeito (do conhecimento) e P designar a proposição que exprime o seu conhecimento, S sabe que P se, cumulativamente, 
  • S acreditar que P;
  • P for verdadeira;
  • S tiver uma justificação para acreditar que P.

Seja este exemplo: Quando Bush justificou a invasão do Iraque, afirmou que sabia que no Iraque havia armas de destruição massiva. Verificou-se que de facto não havia essas armas, pelo que Bush não podia saber que havia as tais armas. E a razão é esta: admitindo que Bush acreditava que havia as tais armas, e mesmo também admitindo que tinha justificação
[os serviços de informação tê-lo-iam informado de tal existência],
a sua crença era falsa.

  • Há quem sempre tenha dito que Bush mentiu.
    A mentira verifica-se quando S acredita que P mas afirma que não-P. Se Bush mentiu, então ele acreditava que não havia as tais armas, mas disse que havia
    [Pacheco Pereira, em tempos, publicou um texto onde defendia que Bush não mentiu, precisamente porque, segundo o comentador, Bush acreditava no que disse].
  • Falar  Verdade a Mentir de Almeida Garrett
    Esta distinção permite-nos perceber que S pode estar a mentir dizendo a verdade.
    Vamos supor que S acredita que no Iraque há armas de destruição massiva, mas
    [por razões que agora não interessam]
    diz que não há. Como S diz o contrário daquilo em que acredita, está a mentir. Mas, como o que ele diz é verdade
    [diz que não há armas e de facto não as há],
    então está a dizer a verdade mentindo.

  • Nota final, talvez
    [não muito]
    despropositada: Falar Verdade a Mentir é o título de uma comédia de enganos do escritor português Almeida Garrett. Leia-a aqui
    [ou descarregue-a de lá, se preferir, para a ler no computador].
    Aqui há uma ficha de leitura da obra.
  • escrito por ai.valhamedeus

    1 comentário(s). Ler/reagir:

    freespirit disse...

    Fantástico, como sempre! :D

    Saudades destas argumentações.
    Vale-me usá-las no meu dia-a-dia, sempre que a lógica não me trai (ou eu não traio a lógica!(?), que o provável conhecimento é o que reina nas mentes.

    Abraço ;)