Para não esquecer...

POIS!... [estórias exemplares] -30- o sexo fraco (2)

O sol arredio hoje fez-nos uma visita, pese embora curta, mas uma visita! Brilhou, aqueceu um pouco a alma, e foi o bastante para apetecer comprar este mundo e o outro. Em boa verdade, mais este. Que o outro está pela hora da morte; ou não fosse o outro!

Estava eu pois, circunspecta, a escolher os legumes e demais produtos hortícolas quando um fiapo de conversa chegou nítido aos meus ouvidos. Nítido, não. Muito audível até; como se fosse soprado por altifalante: o vizinho entradote interpelava, à laia de saudação, a vizinha bem madurinha, se também comia. A resposta veio célere na forma truculenta e vernácula. Não, eu só… . A pudicícia não me deixa acabar a frase, que já devem ter adivinhado. O vizinho ficou speechless, bem como o dono do estabelecimento. A minha reacção foi espontânea: que horror! Ela riu-se em jeito de desculpa e não levou a mal a intervenção da desconhecida.

Fiquei a saber, dada a voz bem alta e o cariz da dona da voz, de quem não tem papas na língua, que a resposta tão pronta fugia bastante à verdade: ela precisava de medicamentos para realizar a necessidade fisiológica básica, segundo explicou já em linguagem mais socialmente correcta.
Saí dali com a sensibilidade bastante abalada.

Talvez por isso resolvi beber uma água
(a propósito, sabiam que há águas muito in cuja garrafa de um design extravagante, feito por estilista de nomeada, pode chegar aos 1.500 euros? Em tempos de crise é um insulto, ainda maior, à sensibilidade de qualquer um).
Portanto, parei numa esplanada para beber a tal água e continuar a leitura do Eduardo Agualusa
(tudo a combinar, como se vê)
e desfrutar do sol já muito tímido a esconder-se atrás de nuvens de cenho assaz carregado. Aqui foi a minha pituitária que alertou o cérebro: uma madame balzaquiana descansava dolentemente a mão, no fim da qual se consumia lentamente um cigarro, de onde se escapulia um fumozinho irritante que me entrava pelo nariz, sem cerimónias. Pedi, reparem, o termo é pedir, se não se importaria, quiçá, de mudar o cigarro de mão. Resposta sorridente e urbana
(já que vive na cidade):
mas estou numa esplanada!?... O marido grunhiu qualquer coisa, um pedido de desculpas não era, pela certa, e ela continuaria impávida a lançar-me o fumo para a cara, não fora a existência salvadora de uma cadeira e respectiva mesa vazias bem longe destes “urbanos”habitantes. Virei-lhes as costas e entranhei-me no livro. A leitura sempre me salvou de situações desagradáveis. A leitura e a música.

De regresso a casa, de pisca ligado há bastante tempo, abrandando para estacionar à porta de casa, oiço uma buzinadela irritada atrás de mim: uma trintona num grande carro a protestar não sei por que razão, de mão impaciente no ar. As palavras não as ouvi, graças a deus! Aonde iria aquela com tanta pressa? Na escola de condução ter-lhe-ão dito que se estaciona de rompante e não se abranda? Ou nem lhe terão mencionado a existência de pisca-pisca, numa sinalética de entendimento urbano?

Feliz com esta mostra de urbanidade que impera nas cidades, carreguei as compras e refugiei-me em casa
(será esta mostra suficiente para um estudo sociológico e comportamental? O meu defunto sociólogo já cá não está para mo dizer, hélas!).
E fiquei a pensar nos incidentes de maior monta que levaram a guerras no passado, e continuam a levar. No limite, as purgas, a queima de livros, a Kristallnacht, e denúncias de vizinhos dum tempo que se deseja que não volte. Porém, já alguém afirmou que o maior erro do nosso tempo é pensar-se que os erros terríveis do passado jamais se repetirão. Foi profeta. E não é Allah!

Se tiverem um tempinho e não se vos der de ir ao cinema
(outro dos meus vícios),
vejam o filme “O Rapaz do Pijama às Riscas”. É um outro filme sobre o III Reich, oferecendo-nos muitos olhares. Depende de que lado se está. Literalmente. Um filme a um tempo belo e terrível. Mas o belo só existe, porque existe o horribilis, não é? E há quem defenda que a maior invenção do Homem não foi Deus, mas o Diabo.

Cruzes, credo, canhoto!

[Faro, 07 de Fevereiro 2009]

escrito por Gabriela Correia, Faro

1 comentário(s). Ler/reagir:

Anónimo disse...

Já se vê que andavas distraída no Dia de Nossa Senhora das Candeias e nem viste passar o padeiro.
E nem fiquei a saber se preferiste o Rapaz às Riscas ou se te contentaste só com o Pijama.