O congresso do apagão jaz morto e arrefece.
Muito se escreveu a propósito do embuste laudatório, rodado em Espinho. Questões de empoderamento, atacando à má fila, de forma violenta, a legislação doméstica; pormenores e minudências ortográficas espalhadas a esmo pelo Magalhães e incursões várias da reputada escritora Margarida Moreira, pelo mundo da expressão epistolográfica, sob a forma de despacho, relegaram, sem apelo, o socratino congresso da confirmação latino-coreana para o inapelável limbo. Ainda assim, não querendo esboçar qualquer sopro pela memória do que convém esquecer, recupero dois textos que, na oportunidade, me escaparam de todo mas que, pela sua inegável qualidade e lucidez, merecem continuar a fazer caminho, ilustrando a já longa antologia do que é preciso denunciar sem rodeios:
O primeiro ["Fotógrafos rigorosamente vigiados no congresso do PS"]
esclarece, se ainda fosse necessário, o conceito de liberdade, segundo José Sócrates, através da lente atenta do fotojornalista do Expresso, Luíz Carvalho, e que, de todo, convém não esquecer. O segundo traça-lhe, em poucas linhas, a medonha biografia burilada a negro com a preciosa ajuda das forças ocultas que, paulatinamente e sem descanso, urge desocultar.
["José Sócrates, o Cristo da política portuguesa"]
«Fotógrafos rigorosamente vigiados no congresso do PS[Luiz Carvalho, fotojornalista do EXPRESSO]
Na manhã seguinte à abertura do Congresso do PS, em Espinho, um assessor socialista mostrava-se radiante com a estratégia seguida para não terem deixado entrar os fotógrafos na zona reservada aos congressistas, na grande área do pavilhão. O que até hoje, em democracia, sempre aconteceu em todos os congressos de todos os partidos.
O resultado estava estampado nas páginas dos jornais da manhã de sábado: ali estavam as imagens neutras, bonitas, todas iguais, que davam a ver de frente o chefe projectado no grande vídeo-hall, a dimensão espectacular do congresso, sem haver fotografias intencionais que pudessem pôr em causa a solenidade da abertura.
Os fotógrafos, guardados por um assessor, foram autorizados a deslocarem-se ao meio do pavilhão, junto a uma câmara que dava de frente Sócrates a discursar. Puderam lá estar três rigorosos minutos, e voltaram escoltados de novo pelo assessor, para o lado mais distante do palco. No futebol está-se mais perto da baliza oposta do que ali durante a oratória de Sócrates.
A domesticação da imprensa visual funcionou. O Congresso foi visto de costas, não havia expressões de militantes enfadados, não se sabia onde estavam ministros e companhia, não havia retratos de conversas aos ouvidos, de olhares, de bocejos. Visto do alto da bancada, a mais de 100 metros de distância, Sócrates mal se via, encandeados que estavam os fotógrafos pela imagem gigantesca reflectida pelo video-hall. Melhor do que na Coreia do Norte, onde Kim Jong II consegue transformar a sua ridícula pequenez num homem aumentado a pantógrafo, de imagem fixa em tecnicolor comunista.
Foi tudo estudado ao pormenor no Congresso do PS. Depois de se ter salvo a brancura da abertura, Sócrates no sábado entrou, depois de almoço, pela frente do Pavilhão permitindo umas fotos rápidas no meio do povo. Depois não houve mais aproximação possível. Mas na manhã de domingo, quando a coisa estava a correr bem, os socialistas prepararam uma chegada triunfal de Sócrates.
Um grupo de velhinhas, que tinham viajado de autocarro socialista, esperavam Sócrates à saída do carro, os fotógrafos e cameramen podiam saltar-lhe em cima, entre atropelos e gritaria, sabendo os assessores que naquela altura a confusão ficava bem no retrato, mostrava envolvência, interesse, apoio, banho de multidão e dava a ideia que afinal Sócrates e congressistas tinham estado sempre acessíveis aos jornalistas. Competência, sem dúvida.
Na hora do encerramento os fotógrafos voltaram a ser escoltados até um canto do pavilhão e mais tarde conduzidos até ao meio, novamente junto a uma câmara de televisão. Quando Sócrates era aplaudido os congressistas levantavam-se e os fotógrafos pura e simplesmente não conseguiam fotografar nada a não ser cabeças.
No final, eu e o Alfredo Cunha rompemos o cerco e avançámos para o palco. Um polícia da segurança de Sócrates agarrou-me um braço e empurrou-me, perante os meus protestos veio outro que me voltou a puxar pelo braço e um deles ameaçou prender-me. Claro que nada disto é grave porque é habitual a segurança tratar com este mimo os fotógrafos. É um clássico praticado por todos os gorilas de todos os partidos.
Mas o que aconteceu foi a menina que estrategicamente segurava num ramo de rosas avançou, numa marcação teatral perfeita, ao encontro de Sócrates, um grupo de congressistas jovens fez questão em posar com o líder para um telemóvel. Tudo decorreu num admirável plano sequência, num aparente caos, mas que estava controlado, marcado. Os fotógrafos nervosos, ansiosos por captarem um momento forte, também ali estavam como figurantes à volta daquele protagonista.
O Partido Socialista usou de uma arrogância e de uma falta de tolerância democráticas graves, intoleráveis num partido que gosta de falar em liberdade, mas que na hora preferiu usar aquela ideia de jerico de Pacheco Pereira há uns anos atrás, quando decidiu proibir a circulação de jornalistas nos corredores da Assembleia.»
«JOSÉ SÓCRATES, O CRISTO DA POLÍTICA PORTUGUESA[DN, 3.3.09]
João Miguel Tavares
Jornalista - jmtavares@dn.pt
Ver José Sócrates apelar à moral na política é tão convincente quanto a defesa da monogamia por parte de Cicciolina. A intervenção do secretário-geral do PS na abertura do congresso do passado fim-de-semana, onde se auto-investiu de grande paladino da "decência na nossa vida democrática", ultrapassa todos os limites da cara de pau. A sua licenciatura manhosa, os projectos duvidosos de engenharia na Guarda, o caso Freeport, o apartamento de luxo comprado a metade do preço e o também cada vez mais estranho caso Cova da Beira não fazem necessariamente do primeiro-ministro um homem culpado aos olhos da justiça. Mas convidam a um mínimo de decoro e recato em matérias de moral.
José Sócrates, no entanto, preferiu a fuga para a frente, lançando-se numa diatribe contra directores de jornais e televisões, com o argumento de que "quem escolhe é o povo porque em democracia o povo é quem mais ordena". Detenhamo-nos um pouco na maravilha deste raciocínio: reparem como nele os planos do exercício do poder e do escrutínio desse exercício são intencionalmente confundidos pelo primeiro-ministro, como se a eleição de um governante servisse para aferir inocências e o voto fornecesse uma inabalável imunidade contra todas as suspeitas. É a tese Fátima Felgueiras e Valentim Loureiro – se o povo vota em mim, que autoridade tem a justiça e a comunicação social para andarem para aí a apontar o dedo? Sócrates escolheu bem os seus amigos.
Partindo invariavelmente da premissa de que todas as notícias negativas que são escritas sobre a sua excelentíssima pessoa não passam de uma campanha negra – feitas as contas, já vamos em cinco: licenciatura, projectos, Freeport, apartamento e Cova da Beira –, José Sócrates foi mais longe: "Não podemos consentir que a democracia se torne o terreno propício para as campanhas negras." Reparem bem: não podemos "consentir". O que pretende então ele fazer para corrigir esse terrível defeito da nossa democracia? Pôr a justiça sob a sua nobre protecção? Acomodar o procurador-geral da República nos aposentos de São Bento? Devolver Pedro Silva Pereira à redacção da TVI?
À medida que se sente mais e mais acossado, José Sócrates está a ultrapassar todos os limites. Numa coisa estamos de acordo: ele tem vergonha da democracia portuguesa por ser "terreno propício para as campanhas negras"; eu tenho vergonha da democracia portuguesa por ter à frente dos seus destinos um homem sem o menor respeito por aquilo que são os pilares essenciais de um regime democrático. Como político e como primeiro-ministro, não faltarão qualidades a José Sócrates. Como democrata, percebe-se agora porque gosta tanto de Hugo Chávez.»
escrito por Jerónimo Costa
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