Aqui se reproduz, sem autorização do Luiz Pacheco que vagueia
[estou certo]
libertária e libertinamente pelos esconsos lugares do Universo, parte do seu texto Os Doutores, a Salvação e o Menino Jesus. O texto completo é de 1946. Na época, Luiz Pacheco chamou-lhe História Antiga e Conhecida e teve honras de apreensão pela PIDE que o viria a confiscar em duas outra edições, sendo a última em 1964.
A atmosfera do poema, o local e as personagens, na sua crueza lapidar, têm identificação garantida
[ainda que qualquer semelhança seja pura coincidência],
com a geografia da pátria e com a fauna que a explora. O “nosso” Herodes, qual engenheiro de Jerusalém, tem já, no seu breve currículo, obra bastante tenebrosa para que nos sintamos mobilizados para o chuto certeiro no “pachecal” traseiro. Com licença do Luiz:
I1Era no tempo em que os animais falavam. O Menino Jesus tinha então doze anos e estava um homenzinho.2Ia crescendo em idade, em graça e sabedoria diante de Deus e diante dos homens.3Seus pais costumavam passar as festas da Páscoa na cidade de Jerusalém, onde tinham alguns parentes e amigos e conhecidos.4Naquele ano não faltaram e ei-los agora que partem de Nazaré a caminho da cidade sagrada.5Ora pois: como deveis saber, o Menino Jesus safou-se daquela vez. Foi pla tardinha.6Depois do almoço, o S. José tinha saído a comprar uma plaina grande, uma garlopa que lhe fazia muita falta, e pregos,7E ao mesmo tempo para saber o preço dum banco de carpinteiro, em segunda mão.8A Nossa Senhora Maria acabou de dar de mamar ao José, o mais novo dos pequenos (Tiago dormia a sesta na sua cama) e agora9A Nossa Senhora Maria estava lavando e esfregando a loiça suja do almoço e não reparou na porta só encostada e no Jesus que se esgueirava prà rua. Fugiu.
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Ora pois: foi pla tardinha e o Menino Jesus fugiu mesmo. Ia procurar os Doutores.
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Na rua outros miúdos da idade dele jogavam a bola, negócio de que o menino muito gostava e em que era sabido.
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Mas o Jesus tinha a sua fisgada: queria falar aos Doutores.
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Estes Doutores (eles não eram muitos, mas inda lá havia uma boa meia dúzia) reuniam-se todas as tardes num velho café judeu,
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Naquele velho café judeu que uma bomba, escondida pelos árabes, transformou depois em cacaria inútil e imunda.
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Reuniam-se à saída da Repartição — cinco horas, cinco e meia — e falavam de coisas várias.
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Falavam.
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Geralmente era filosofia ou religião ou política — e Ortografia.
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As vezes até, um qualquer se aventurava pelos caminhos mais despreocupados e mais floridos das artes e das literaturas.
escrito por Jerónimo CostaII1
Na esquina próxima do tal café rondava Judite, a mulher pública, que fornica com todos os machos de Jerusalém;
2
Mas os olhos do Menino não gozaram o corpo da pecadora: ele queria falar aos Doutores.
3
Era ali. Menino Jesus entrou, apareceu e nele não havia nem medo nem acanhamento, o que seria muito natural numa criança;
4
Mas ele sabia muito bem o que ia fazer e estava calmo e confiante.
Os Doutores não deram logo pelo miúdo andrajoso, embrenhados e interessados, como estavam,
6
Numa interminável discussão sobre os seres, seus diversos modos e a correcta e novíssima maneira de os grafar.
7
Mas daí a bocado um deles olhou finalmente Jesus que passeava hesitante e aparvalhado por entre as mesas.
8
E estendeu-lhe a mão com meio dracma dentro, dizendo: «Vai-te embora, não maces.»
9
Jesus pasmou nele os lindos olhos castanhos e, judeu, sumiu avaramente o meio dracma numa dobra da sua túnica.
10
Mas bem percebeu que não tinha maneira de se fazer notar plos senhores Doutores;
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E mete os dedos na boca com um jeito especial que um companheirão das brincadeiras lhe ensinou.
12
E dá um assobio tamanho e tão agudo que ficou a repicar nas orelhas dos sábios e enrugou de mil rachas o vidro dos copos.
13
Houve rebuliço e grande, na assembleia dos Doutores.
14
Mas já o Menino Jesus se escarrancha num banco e lhes grita: «Irmãos, meus irmãos.»
[…]III5
Meus irmãos: soube na cabana de meus pais que vos costumáveis reunir aqui para falar de coisas
6
De coisas úteis, necessárias e urgentes para a salvação dos homens.
7
Irmãos, ouvi então o que tenho para vos dizer: os homens sofrem.
8
Até mim chegam os seus lamentos e pragas e a minha alma sofre com eles.
9
Ora, irmãos Doutores, isto não pode continuar assim. Vós bem sabeis que o tirano Herodes escraviza o povo com leis pesadas e iníquas
10
Aqui em Jerusalém e plas terras da Judeia cresce o medo a Herodes e aos seus partidários; vamos viver toda a vida assim?
11
Ouvi, irmãos Doutores, isto não pode continuar. Eu vim de Nazaré da Galileia, vi muitas terras e muitos lugares antes de chegar a Jerusalém.
12
Por toda a parte é o mesmo: fome e miséria, fome e tirania, fome e doença.
13
Isto assim não pode continuar. Herodes esmaga o povo com leis duras e injustas,
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Ele é um tirano e um mau governante, ele terá o castigo que os seus crimes merecem.
15
Ai dele! Ai dele! Porque em verdade vos digo que Herodes e os amigos de Herodes terão o castigo dos seus crimes e vilezas.
16
Meu divino pai está lá em cima e tudo vê e tudo sabe. E quando quer, é padrasto e mau a valer. A sua cólera será implacável, a sua justiça será cega.
17
Sete vezes sete, pragas mais terríveis que as do Egipto cairão sobre eles e as casas e as coisas que edificaram serão arrancadas pla raiz. Não mais se falará desta geração péssima.
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Eu bem o sei melhor que vós.
19
Mas enquanto o dia da redenção não chegar, o povo espera e sofre.
20
O povo está farto de pagar impostos, de passar fome, de suportar violências; o povo está farto do pão maldito que lhe dão a comer, pão maldito porque é o pão da desonra.
21
O povo quer liberdade para se governar e dirigir a nação.
22
O povo judeu quer que o deixem ganhar a vida com honradez e decência e que o livrem da usura dos escribas e dos fariseus. O povo está farto de ser escravo.
23
Era isto que eu tinha para vos dizer, era de tudo isto que eu vos queria falar.
24
Calou-se a voz do Menino Jesus.
[…]»
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Tanto naquele tempo como agora nada que uma boa vassourada não limpasse estes dois herodes, o antigo e o actual
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