Um texto da jornalista Graça Franco que vale a pena (re)ler, retirado do Público do passado dia 24: O Espaço em Branco foi o grande aliado da Liberdade em tempos de censura.
Memória de um espaço em branco
Há 28 anos que escrevo em liberdade. Isto é, desde que sou jornalista. A minha geração tem essa dívida de gratidão para com os militares de Abril. Os que de entre nós optaram pelo jornalismo não tiveram de escrever um único texto a pensar "isto passa ou não passa na censura?". Bastaria isso para justificar a alegria daquele dia e a festa de amanhã. Não sei viver sem liberdade e espero deixar aos meus filhos, se não um país rico e desenvolvido, pelo menos um país livre.
Mas, exactamente porque a Liberdade de Expressão é um dos mais sólidos pilares da democracia e verdadeiro garante da sua qualidade, não convém dar o combate por terminado. Trinta e cinco anos depois de iniciado, o regime vive uma das piores crises de sempre. Não se trata só de uma crise económica de que não há memória. Antes fosse. Trata-se da pior das crises: a da credibilidade. Minado pela descrença gerada pelo compadrio, pela corrupção, pelo salve-se quem puder de uma elite cuja qualidade parece degradar-se a cada hora. A Democracia parece soçobrar ao drama da má moeda.
As Liberdades que temos por garantidas não estão ainda conquistadas em definitivo. É coisa pela qual vale a pena e é preciso continuar a lutar em cada dia. Daí esta crónica integralmente dedicada ao espaço em branco.
Para quem não saiba, o Espaço em Branco foi o grande aliado da Liberdade em tempos de censura. Quando esta se conseguiu impor, ainda travestida de "censura de guerra" antes mesmo de Salazar e em plena Primeira República.
A 4 de Janeiro de 1919, a primeira página do Diário de Notícias saía exibindo quase metade em branco. Era o sinal do corte. Era a prova, também, de que a lei repressiva não só não terminaria com a guerra como sobreviveria à própria morte de Sidónio e ao curto período da Monarquia do Norte. A censura foi justificada ainda por mais algum tempo por quem tinha por missão defender a República com a necessidade de travar a Monarquia. Só terminará em Fevereiro de 1919, dando lugar aos últimos seis anos de regime (até ao 28 de Maio) de novo em liberdade.
A Censura de Salazar será bem pior. Começará ainda antes dele, logo a 22 de Junho de 1927, em pleno ministério de Gomes da Costa, com o curioso recurso a uma nota enviada aos jornais para publicação, subscrita por um obscuro segundo comandante da polícia. Dizia ela tão-só o seguinte: "Por ordem superior levo ao conhecimento de V. Exa. que a partir de hoje é estabelecida a censura à imprensa, não sendo permitida a saída de qualquer jornal sem que quatro exemplares sejam presentes no comando geral da GNR para esse fim." Um dia antes, em entrevista ao Diário da Tarde, Gomes da Costa afirmara: "Fala-se em censura à imprensa. Não senhor. Não estou disposto a estabelecê-la. Pelo menos... enquanto os jornais não me incomodarem..." Devem ter incomodado. Tudo se passa num clima de excepção, de suspensão de garantias quando o risco de contragolpe monárquico parece ainda iminente. Filha de pai incógnito, a Censura será apresentada aos jornais pelo coronel Prata Dias, que assumirá a chefia dos serviços e que, segundo o relato de O Mundo, disse "amavelmente" aos representantes dos jornais, para sua orientação, que os assuntos que cairiam sob a sua alçada de corte podiam em traços largos resumir-se a "insultos" a membros do Governo e notícias que "fundada ou infundadamente" pudessem alarmar o espírito público e que tivessem origem em movimentos de carácter revolucionário, fosse qual fosse a sua "natureza". E acrescentou que "não seriam permitidos espaços em branco".
Estava criado o monstro. Na fluidez imprecisa do que cai ou não no crivo do censor e nessa obrigatoriedade expressa de omissão do corte. Para que o público jamais conhecesse a real eficácia da sua acção. Para que o escândalo deixasse de ser visível e permanente. Até que o leitor acabasse a suspeitar se a censura efectivamente teria cortado alguma coisa.
Para os jornalistas que ainda conseguiram suster a medida por vinte e quatro horas, alegando os transtornos que adviriam desse preencher de espaço, começava o pesadelo e o desafio. Jamais o espaço seria preenchido ao gosto da Censura, que a isso nunca se prestaram os jornalistas (apesar das "aclarações" a que a Censura frequentemente recorria para sugerir saídas alternativas e que eram, praticamente, sempre olimpicamente ignoradas!).
Como ainda esta semana Pinto Balsemão recorda no texto que assina na Visão lembrando a experiência dos jornalistas do Expresso: "Como os espaços em branco eram proibidos, cada corte, de pequena ou grande extensão, forçava-nos a repaginar, tirar nova prova de página e voltar a submetê-la aos censores."
Habituámo-nos de tal forma à liberdade que não apenas a desprezamos como às vezes a esquecemos. Dela só nos damos conta quando, perdida, verificamos com surpresa que ela deixa um enorme espaço em branco na nossa democracia. Mas até para o notarmos é essencial que não nos obriguem a escondê-lo. Aqui fica esse espaço, assumidamente em branco, em tributo pelos seus bons serviços, prestados à causa da liberdade.
escrito por ai.valhamedeus
Mas, exactamente porque a Liberdade de Expressão é um dos mais sólidos pilares da democracia e verdadeiro garante da sua qualidade, não convém dar o combate por terminado. Trinta e cinco anos depois de iniciado, o regime vive uma das piores crises de sempre. Não se trata só de uma crise económica de que não há memória. Antes fosse. Trata-se da pior das crises: a da credibilidade. Minado pela descrença gerada pelo compadrio, pela corrupção, pelo salve-se quem puder de uma elite cuja qualidade parece degradar-se a cada hora. A Democracia parece soçobrar ao drama da má moeda.
As Liberdades que temos por garantidas não estão ainda conquistadas em definitivo. É coisa pela qual vale a pena e é preciso continuar a lutar em cada dia. Daí esta crónica integralmente dedicada ao espaço em branco.
Para quem não saiba, o Espaço em Branco foi o grande aliado da Liberdade em tempos de censura. Quando esta se conseguiu impor, ainda travestida de "censura de guerra" antes mesmo de Salazar e em plena Primeira República.
A 4 de Janeiro de 1919, a primeira página do Diário de Notícias saía exibindo quase metade em branco. Era o sinal do corte. Era a prova, também, de que a lei repressiva não só não terminaria com a guerra como sobreviveria à própria morte de Sidónio e ao curto período da Monarquia do Norte. A censura foi justificada ainda por mais algum tempo por quem tinha por missão defender a República com a necessidade de travar a Monarquia. Só terminará em Fevereiro de 1919, dando lugar aos últimos seis anos de regime (até ao 28 de Maio) de novo em liberdade.
A Censura de Salazar será bem pior. Começará ainda antes dele, logo a 22 de Junho de 1927, em pleno ministério de Gomes da Costa, com o curioso recurso a uma nota enviada aos jornais para publicação, subscrita por um obscuro segundo comandante da polícia. Dizia ela tão-só o seguinte: "Por ordem superior levo ao conhecimento de V. Exa. que a partir de hoje é estabelecida a censura à imprensa, não sendo permitida a saída de qualquer jornal sem que quatro exemplares sejam presentes no comando geral da GNR para esse fim." Um dia antes, em entrevista ao Diário da Tarde, Gomes da Costa afirmara: "Fala-se em censura à imprensa. Não senhor. Não estou disposto a estabelecê-la. Pelo menos... enquanto os jornais não me incomodarem..." Devem ter incomodado. Tudo se passa num clima de excepção, de suspensão de garantias quando o risco de contragolpe monárquico parece ainda iminente. Filha de pai incógnito, a Censura será apresentada aos jornais pelo coronel Prata Dias, que assumirá a chefia dos serviços e que, segundo o relato de O Mundo, disse "amavelmente" aos representantes dos jornais, para sua orientação, que os assuntos que cairiam sob a sua alçada de corte podiam em traços largos resumir-se a "insultos" a membros do Governo e notícias que "fundada ou infundadamente" pudessem alarmar o espírito público e que tivessem origem em movimentos de carácter revolucionário, fosse qual fosse a sua "natureza". E acrescentou que "não seriam permitidos espaços em branco".
Estava criado o monstro. Na fluidez imprecisa do que cai ou não no crivo do censor e nessa obrigatoriedade expressa de omissão do corte. Para que o público jamais conhecesse a real eficácia da sua acção. Para que o escândalo deixasse de ser visível e permanente. Até que o leitor acabasse a suspeitar se a censura efectivamente teria cortado alguma coisa.
Para os jornalistas que ainda conseguiram suster a medida por vinte e quatro horas, alegando os transtornos que adviriam desse preencher de espaço, começava o pesadelo e o desafio. Jamais o espaço seria preenchido ao gosto da Censura, que a isso nunca se prestaram os jornalistas (apesar das "aclarações" a que a Censura frequentemente recorria para sugerir saídas alternativas e que eram, praticamente, sempre olimpicamente ignoradas!).
Como ainda esta semana Pinto Balsemão recorda no texto que assina na Visão lembrando a experiência dos jornalistas do Expresso: "Como os espaços em branco eram proibidos, cada corte, de pequena ou grande extensão, forçava-nos a repaginar, tirar nova prova de página e voltar a submetê-la aos censores."
Habituámo-nos de tal forma à liberdade que não apenas a desprezamos como às vezes a esquecemos. Dela só nos damos conta quando, perdida, verificamos com surpresa que ela deixa um enorme espaço em branco na nossa democracia. Mas até para o notarmos é essencial que não nos obriguem a escondê-lo. Aqui fica esse espaço, assumidamente em branco, em tributo pelos seus bons serviços, prestados à causa da liberdade.
escrito por ai.valhamedeus
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