Para não esquecer...

FINANCIAMENTO DOS PARTIDOS, ELEIÇÕES E ALGO MAIS

Junto 4 textos de opinião retirados da edição de ontem do Público.

O primeiro é o editorial do director José Manuel Fernandes. Comenta a aprovação da revisão do diploma sobre o financiamento dos partidos, considerando que é [...]
incompreensível, é mesmo vergonhoso, a forma como, de forma dissimulada, sem discussão que se visse, com quase tudo a ser resolvido em reuniões fechadas à imprensa, a Assembleia da República aprovou ontem a revisão do diploma sobre o financiamento dos partidos em termos tais que não só escancara as portas à corrupção, como cria inúmeros alçapões por onde podem escapar-se os que estiverem dispostos a abusar das regras.
Não se compreende que o limite ao financiamento em "dinheiro vivo" num dos países do mundo com uma melhor rede de terminais multibanco tenha sido aumentado 55 vezes. Não se compreende igualmente o alargamento às campanhas não presidenciais da possibilidade de donativos individuais, um mecanismo que permite receber grossas maquias e depois "doá-las" ao partido através de redes de militantes arregimentadas por um qualquer cacique. Isto só para dar dois exemplos mais gritantes.
As alterações são chocantes e representam um insulto aos cidadãos eleitores por permitirem que os partidos gastem muito mais em campanha em tempos de crise económica, como mostra a hipocrisia dos falsos moralistas, aqui com destaque para os campeões do comportamento angelical, o Bloco de Esquerda. É fantástico e revelador como, num momento como este, todos estão pateticamente de acordo e não entendem que possibilitar o regresso do tempo das "malas das notas" representa um tremendo retrocesso no que diz respeito à transparência das campanhas eleitorais e do financiamento dos partidos. Mas é também assim que se compreende como nunca foi possível fazer uma lei contra o enriquecimento ilícito. O resto são basófias.
E termina com 2 notas, "irresistíveis":
Diminuir o valor das multas que as empresas poluidoras têm de pagar invocando as dificuldades das pequenas e médias empresas é criminoso. Quem prevarica tem de continuar a pagar as multas que merece, que já nem eram elevadas. Porquê? Porque perdoar a quem prevarica é distorcer a concorrência e beneficiar as más pequenas e médias empresas que ficam em condições de fazer mais concorrência às que cumprem a lei. Para além de que, antes de abdicar da prevenção do ambiente, há dezenas de outras medidas que aliviaram os problemas de tesouraria do nosso tecido industrial. Mas ao optar por sacrificar o ambiente o nosso primeiro-ministro mostra como é diáfana a sua costela de ambientalista. Já não lhe bastavam os famosos PIN...
Em nome da coerência, o Bloco de Esquerda deverá apresentar em breve no único concelho onde elegeu um presidente da câmara, o de Salvaterra de Magos, uma proposta idêntica à que fez aprovar no concelho de Sintra, onde as touradas passaram a ser proibidas. Se não o fizer, volta a provar que, como aconteceu com a votação da lei de financiamento dos partidos, uma coisa são as suas lições de moral e outra a sua real prática. É pois necessário que Louçã diga rapidamente se vai ou não pregar contra o sofrimento dos touros para Salvaterra de Magos. Temos uma data para lhe sugerir: domingo 10 de Maio, altura da Festa do Melão, que terá como ponto alto o toureio de, citamos, "6 terroríficos touros 6" da "mais antiga ganadaria de Portugal". Era de homem.

António Vilarigues comenta o modo como a imprensa analisou as eleições na África do Sul, com interessantes considerações sobre um certo conceito de democracia:
Como se fabrica uma notícia

Em muitos países europeus, 65,9 por cento dos votos dariam muito mais que dois terços dos deputadosAcomunicação social nos nossos dias reproduz como nunca a ideologia dominante. Seja na TV, na rádio ou nos jornais. A forma como a generalidade da comunicação social cobriu as recentes eleições na África do Sul é um bom espelho do que afirmamos.
Apetece perguntar: quais seriam as notícias publicadas pelos media ditos de referência se, num qualquer país da Europa ou da América do Norte (em relação à América Central e à América do Sul, o caso já muda de figura...), um partido político ganhasse as eleições com 65,9 por cento dos votos? E se houvesse uma participação eleitoral da ordem dos 77,3 por cento?
Imaginemos França, Inglaterra, Alemanha ou Canadá. Cantar-se-iam loas à democracia e aos candidatos eleitos. Falar-se-ia de legitimidade democrática e do bom funcionamento do sistema. Escrever-se-ia sobre uma liderança política legitimada de forma indiscutível. E não venham dizer que isto é especulação. Os exemplos nas últimas dezenas de anos abundam e aí estão para o provar.
Mas sobre a África do Sul não. O essencial, a vitória do ANC com dois terços dos votos expressos (11.650.748 em cerca de 23 milhões de votantes inscritos), 264 deputados em 400, triunfo em 8 das 9 províncias, 126 representantes em 184 no Conselho Nacional das Províncias (Câmara Baixa do Parlamento) é sistematicamente desvalorizado. O acessório, o não ter alcançado os dois terços dos deputados eleitos (faltaram escassos 3 lugares), é promovido à categoria de quase derrota do ANC.
Significativamente, é em vão que procuramos uma notícia que nos informe que em quase todos os países europeus e da América do Norte com 65,9 por cento dos votos qualquer partido teria muito mais que dois terços dos deputados. Portugal incluído. E isto graças a sistemas eleitorais muito "democráticos" onde, por exemplo, o partido trabalhista de Tony Blair, com menos do que 50 por cento dos votos, obteve sucessivas maiorias absolutas bastante folgadas.
É também em vão que procuramos uma análise objectiva do novo Presidente da África do Sul Jacob Zuma. E era fácil. Bastava transcrever o que sobre ele disse e escreveu Nelson Mandela ao manifestar-lhe o seu apoio. Tal como são quase nulas as notícias que referem que ficou claramente provado que os processos por corrupção (que abrangeram também dirigentes do Partido Comunista) foram desencadeados com fins políticos por ministros do Governo de Thabo Mbeki (que saíram do ANC e fundaram um novo partido). Que elementos dos órgãos de segurança do Estado e do aparelho judicial tudo fizeram para manipular factos e provas. Que a comunicação social dominante na África do Sul tentou de múltiplas formas desacreditar Jacob Zuma e a nova liderança do ANC.
Mas encontramos coisas ridículas como o "facto" de Zuma ter sido condenado a dez anos de prisão, não pela sua actividade no ANC, mas "por tentar deixar o país clandestinamente, aos 21 anos". Curiosamente, ou talvez não, a mais objectiva análise vem de onde menos se poderia esperar. De um inimigo de ontem: Roelof "Pik" Botha.
O mesmo para as propostas políticas do ANC geralmente arrumadas na categoria de "populistas". E porquê? Porque põem uma muito grande ênfase na prioridade à resolução dos problemas das camadas trabalhadoras e da população mais desfavorecida do país. Prioridade no combate à pobreza e ao desemprego. Promessas que tudo indica serem para cumprir, esse é o problema para certos poderes, e não para ficar no papel.
Mas nada disto nos surpreende. Basta ler o que Eduardo Galeano (o tal do livro oferecido por Chávez a Obama) escreve sobre o processo na Venezuela. Onde recorda que nunca, em parte alguma do mundo, um Presidente eleito se submeteu a meio do mandato a uma consulta eleitoral revocatória. E Hugo Chavez fê-lo. Mas toda (quase) a comunicação social dominante escondeu este "simples" facto.

Vasco Pulido Valente não traça um retrato particularmente positivo dos 100 dias de governação de Obama:
Os cem dias de Obama

Como a campanha eleitoral, a campanha de Obama para "refazer" a "imagem" da América no mundo foi absolutamente perfeita: prometeu fechar Guantánamo; admitiu a existência de tortura (e divulgou os relatórios da CIA); deu uma entrevista à televisão Al-Arabiya; disse (em Ankara) que não estava, nem estaria em guerra com o islão; aliviou (sem o levantar) o embargo a Cuba; serviu franqueza e tolerância ao inominável Hugo Chávez; passeou a sua simpatia como uma pop star pelos G20 (sem comover Angela Merkel); e até exibiu boa vontade com a Rússia e o Irão. Pode um novo Presidente convocar uma nova América com um puro espectáculo como este? Não pode. Toda a gente colaborou na coisa para não ficar mal no retrato, mas ninguém de facto se convenceu.Como a campanha eleitoral, a campanha de Obama para "refazer" a "imagem" da América no mundo foi absolutamente perfeita: prometeu fechar Guantánamo; admitiu a existência de tortura (e divulgou os relatórios da CIA); deu uma entrevista à televisão Al-Arabiya; disse (em Ankara) que não estava, nem estaria em guerra com o islão; aliviou (sem o levantar) o embargo a Cuba; serviu franqueza e tolerância ao inominável Hugo Chávez; passeou a sua simpatia como uma pop star pelos G20 (sem comover Angela Merkel); e até exibiu boa vontade com a Rússia e o Irão. Pode um novo Presidente convocar uma nova América com um puro espectáculo como este? Não pode. Toda a gente colaborou na coisa para não ficar mal no retrato, mas ninguém de facto se convenceu.
Basta pensar que nada mudou no principal: na guerra do Iraque e na guerra do Afeganistão. Ou, se mudou, mudou para pior. No Iraque o plano de retirada militar é, sem tirar nem pôr, o plano de Bush e não é, na essência, um plano de retirada: a América vai conservar na região o número suficiente de tropas para garantir a "solidez" de um Estado que nunca será sólido. Por outras palavras, não sairá no futuro previsível - embora "acantonada" e sem (segundo se espera) funções de policiamento. No Afeganistão, para que Obama pede (sem muito sucesso) a ajuda da NATO e para onde já mandou mais 4000 homens, ninguém vê maneira de eliminar os taliban. Pelo contrário, a própria América começa agora a perceber o risco dos taliban, ou dos seus sócios, virem pouco a pouco a tomar conta do Paquistão, que tem, como se sabe, armas nucleares.

Quanto ao resto, a esquerda gosta do intervencionismo do Estado na economia. O pacote de "estímulo" de 787 mil milhões de dólares (fundamentalmente para o "sistema" financeiro, se merece o nome); os 3500 milhões de dólares para investir em energia, em infra-estruturas, no ensino, na saúde, na criação de emprego e no "alívio" do contribuinte; e, principalmente, a indústria automóvel seminacionalizada - tudo isto e o mais que por aí virá alegra a alma adormecida do socialismo. Só que os resultados não parecem famosos (por enquanto?) e, se a crise persistir, não se percebe para que lado se voltará Obama. A cartilha chegou ao fim (sem sequer faltar o fetichismo da ciência) e os dias de festa passam depressa.


O último, que considero particularmente interessante, é do ex-ministro Luís Campos e Cunha, sobre o sigilo bancário:
Desmancha-prazeres-indevidos

Nada me dá mais prazer do que ser desmancha-prazeres de prazeres indevidos. Estou a falar da moda de acabar com o sigilo bancário, da forma como o querem fazer e no momento em que o estão a fazer. Não me refiro a problemas de corrupção ou crimes mais graves ainda, mas tão só da fuga ao fisco.
Antes de mais e para que fique claro: não há sigilo bancário, há muitos anos, para efeitos fiscais. Ainda há dias, quando este jornal afirmava que eu fui contra o fim do sigilo bancário quando ministro, estava incorrecto: não podia ser contra uma coisa que não existia.
Mas, estranhamente, há sigilo bancário para outros crimes bem mais graves. Como num recente debate televisivo ficou claro, se eu contratar alguém para matar um sujeito com quem antipatizo, tenho toda a protecção. Para verem se fui suficientemente honesto para ter pago o servicinho e verificarem a minha conta bancária, só um Juiz da Relação o pode autorizar. Contudo, se um sujeito enviar uma carta anónima a denunciar, com ou sem verdade, que alguém fugiu ao fisco por cem euros, a devassa é total. E legal. É assim há anos mas não devia ser: os valores em causa são muito diferentes.
Os acessos de moralidade, como o recente ataque ao sigilo bancário, acontecem sempre antes das eleições: os políticos (todos ou quase todos) não fogem à demagogia de picarem a inveja da populaça. O momento é perfeito.
Desde que acabou o sigilo bancário que não há trafulhices fiscais com contas bancárias realizadas por qualquer vigarista digno desse nome. Se o trafulha for minimamente inteligente, há muito que usa envelopes com dinheiro. Se não for inteligente, já devia estar na prisão porque a polícia pode facilmente apanhá-lo. Com ou sem sigilo.
Além disso, o dito envelope não só não deixa rasto como pode ficar bem guardado em casa, onde ninguém pode ir sem a autorização de um juiz, naturalmente. E bem.
Mas eu não percebo porque é que o dinheiro em casa tem toda a protecção e o dinheiro no banco fica à mercê de qualquer funcionário.
Outro aspecto em que, na fuga para a frente, ninguém pensa, é que o fim do sigilo bancário tem de ter pesos e contrapesos. Fiscalizar o fiscal é importante. Em Espanha quando, há uns 20 anos, acabaram com o sigilo bancário houve consequências interessantes. Primeiro, passou a ser o país desenvolvido que mais utilizava dinheiro vivo. Ou seja, as caixas do multibanco passaram a ser as mais utilizadas do mundo: tudo tinha de ser pago em notas. Experimente ir às compras e só pagar em dinheiro e verá a trabalheira que dá. Segundo, pequenas lojas deixaram de ter conta bancária, o que fazia as delícias dos ladrões de pequenas quantias. Terceiro, foi descoberto um gang de gente com ligações ao fisco, sediada em Madrid e Barcelona, que se entretinha a extorquir dinheiro aos incautos. Imagine que se descobre que, apesar de pagar os seus impostos, tem uma amante a quem presenteia regularmente com pagamentos que passam pela sua conta bancária. A chantagem é óbvia e fácil. E em todos os países e em todas as organizações há "maçãs podres". Em Espanha, onde não são meigos e a justiça vai funcionando, parou tudo na prisão. Felizmente.
Na fúria antes das eleições, agora tal como em 2004-5, ninguém percebe que o que pode interessar ao fisco são as entradas nas contas (valores a crédito) mas a privacidade de cada cidadão está, no essencial, onde gasta o dinheiro (valores a débito). Basicamente, a fuga ao fisco está no que se recebe e a nossa intimidade está onde se gasta, nos tratamentos de uma doença grave ou a ajudar um amigo ou em jantaradas. Mas o fisco não tem nada com isso. Este aspecto ninguém acautela e a destrinça não é feita.
Outra destrinça importante é que a protecção das pessoas e das empresas deve ser diferente. As pessoas têm intimidade que deve ser protegida, as empresas têm, quando muito, segredos comerciais. São valores bem diferentes e como tal deveriam ter protecções legais também diferentes.
Daqui a uns anos, com os chips nos automóveis, poderemos ter uma discussão parecida. Hoje vão ser colocados chips apenas para fins de controlo banais e está vedada a sua utilização para outros fins. Mas se houver um rapto de uma criança ou um assalto violento ou um assassinato? Quem vai ser contra que se utilizem os chips para outros fins? E se o chefe das secretas, daqui a dez anos, for amigo do primeiro-ministro? E se for ele o próprio chefe das secretas? A desvirtuação para vigilância indevida dos cidadãos, não coloca em risco a nossa liberdade? E se for eleito um tipo com tanto respeito pelos direitos humanos como Bush-filho? E se for ainda pior?
Num país que, ainda não há muitos anos, tinha uma ditadura e uma polícia política estes avanços contra a privacidade e a intimidade dos cidadãos são preocupantes. Com vias-verde, cartões de crédito e contas bancárias vasculhadas, câmaras de vigilância em tudo quanto é sítio, a nossa liberdade passará a ser uma benesse dos políticos no poder. Eu não acredito em benesses, prefiro garantias, regras e contrapoderes. Não percebo o comportamento do PS, que tem particulares responsabilidades nestas matérias. Tem, hoje, uma maioria absoluta e, no passado, foi o bastião da defesa da cidadania. A liberdade está em causa, hoje, porque estamos a criar as condições para que, amanhã, ela possa desaparecer. O Hitler também foi eleito.
escrito por ai.valhamedeus

2 comentário(s). Ler/reagir:

Anónimo disse...

Vasco Pulido Valente não traça um retrato particularmente positivo dos 100 anos de governação de Obama:??? 100 anos de governação???
Nem o Salazar!!!

CRM

Ai meu Deus disse...

:-(

Gracias, CRM! -- Isto é um teste à atenção dos nossos leitores, que continuam atentíssimos, como se vê ;-)

Correcção feita (acreditem os leitores que não é desleixo da minha parte: leio mais do que uma vez o que escrevo. Mas...)