Para não esquecer...

DO CONTRA [28] o sexo, perdição do vaticano

O sexo e o VaticanoAs violações e sevícias descobertas na Irlanda verificaram-se em muitos outros países -- a hierarquia católica pratica uma política de secretismo e ocultação.

"Se não podemos ser castos, pelo menos sejamos cautelosos." Esta ironia, que o pensador Georges Bernanos coloca na boca do seu simpático padre de aldeia, define o espírito com o qual a Igreja romana enfrenta os comportamentos sexuais dos seus clérigos. O mal é quando a hipocrisia e a ocultação dizem respeito a actividades criminosas, como a pederastia e outros abusos de poder. É essa política de secretismo, avalizada pelo Vaticano, que agora submergiu a hierarquia católica num escândalo de proporções colossais. Afecta a muito católica Irlanda. Os factos são devastadores, com testemunhos de 1.000 alunos em 216 escolas, reformatórios ou orfanatos, e relatos chocantes de violações, abusos e maus tratos a crianças de ambos os sexos, geralmente de lares humildes.

O que aconteceu na Irlanda tem ocorrido em muitos outros países. Em Espanha, existem inúmeras queixas, com meia dúzia de condenações penais contra sacerdotes pederastas. Mas é difícil conhecer a magnitude do problema, dada a tendência da hierarquia para ignorar, ou mesmo para encobrir, os escândalos. As instruções do Vaticano são sintomáticas. Perante qualquer denúncia, há que garantir a reserva total, diz uma instrução de 1962.

Quando Dante Alighieri descreveu na Divina Comédia o sofrimento, nas profundezas do inferno, de numerosos sodomitas, deteve-se sobretudo num grupo de sacerdotes libertinos. Encontra aí também um bispo de Florença. O poeta depressa se cansa de ajustar contas "com pecado tão óbvio." "Saber de alguém é bom / dos restantes será melhor calar / que de tantos que são o tempo é curto", desculpa-se (Canto XV).

Na altura, castigavam-se severamente os eclesiásticos de vida depravada. Um decreto papal de 1568, intitulado Horrendum, ordenou que "os sacerdotes que abusarem serão privados de todos os ofícios e benefícios, e entregues aos tribunais seculares para punição". O que não foi cumprido com escandalosa frequência.

O caso mais notório foi a protecção de João Paulo II ao fundador dos Legionários de Cristo, Marcial Maciel. Durante décadas, Maciel e alguns dos seus lugar-tenentes submeteram a abomináveis abusos centenas de rapazes, em especial no seminário de Ontaneda (Cantábria). Somente após a morte do Papa polaco, em 2005, o famoso pederasta foi apeado do seu enorme poder, com a proibição rigorosa de se aproximar de Roma. Refugiou-se no México. Foi o seu único castigo em vida. Morreu faz agora um ano.

O primeiro escândalo por esse comportamento encobridor ocorreu em Itália, numa das escolas pias do aragonês José de Calasanz. Fundador da Ordem dos Clérigos Regulares Pobres, agora conhecidos como escolápios, Calasanz reprimiu a divulgação do abuso sexual de crianças pelos seus sacerdotes. Pagou por isso. Um dos pedófilos, o padre Stefano Cherubini, foi tão bem sucedido no encobrimento dos seus crimes, que chegou mesmo a ser superior da ordem, encostando o fundador a um canto. A ordem foi encerrada por Inocêncio X. Calasanz morreu com 91 anos, em Roma, ainda caído em desgraça. Oito anos mais tarde, Alexandre VII reabilitou-o. Foi santificado em 1767.

O sexo foi assunto desprovido de importância para os primeiros cristãos, e é praticamente ignorado por São Paulo (o temperamental apóstolo chegou a dizer que "é melhor casar-se que abrasar-se"). Mas depressa se impôs a ideia de que o celibato era superior, o casamento inferior, e o sexo, em consequência, um acto perverso. Foi o bispo Ambrósio de Milão (373-397), quem desbravou o caminho. Homem "imponente", segundo São Agostinho (pela sua sabedoria e porque "lia silenciosamente", um hábito desconhecido no mundo clássico), Ambrósio impôs o critério de que a vida conjugal era incompatível com uma carreira na Igreja. "Mesmo um bom casamento é escravidão", disse. Daí à obrigatoriedade do celibato do clero seria um passo, dado entre azedas disputas.

A obstinada decisão de esconder ou proteger os desvios sexuais do clero dissoluto, mesmo quando são criminosos, tem que ver com a imagem heróica que os eclesiásticos têm de si próprios. "A Igreja é uma preciosa elite de super-homens porque o espírito actua neles. Devemos defendê-la da contaminação, venha de onde vier", prega Tertuliano.

Julio Pérez Pinillos, ex-presidente da Federação Internacional de Sacerdotes Católicos Casados (FISCC), acredita que o escândalo dos abusos sexuais por sacerdotes "remete para a inconveniência de manter essa lei eclesiástica medieval e não evangélica." "O celibato obrigatório promove relações clandestinas, e dá lugar a abusos que sofrem sobretudo os menores, as mulheres e a descendência, quando a há. Que bom serviço prestaria, à clareza evangélica e ao merecido bom nome de muitos sacerdotes e religiosos e religiosas entregues às comunidades cristãs, a revisão dessa lei do celibato, formulada em meados do século XII ".

Emilia Robles Bohórquez, da organização Proconcil, sublinha, por seu turno, que "não é toda a Igreja que comete crimes", mas que cabe a toda a Igreja, “com coragem, transparência e energia, encarar o facto". E acrescenta: "Dada a gravidade das situações, temos de rever a forma de lidar com a sexualidade, mas antes temos que limpar e desinfectar o porão de algumas instituições que, longe de ser o que eles dizem que são, são, com demasiada frequência, um ninho de bichos". Robles acredita que, nesse esforço de limpeza, a hierarquia precisa de "colaborar com as instituições civis e afastar-se de cumplicidades e de vitimismos".

Apesar de ter sido entre os escravos, os pobres e as mulheres que primeiro se difundiu o Cristianismo, a agressiva tradição anti-feminista depressa avança na nova organização eclesiástica. Foi por esse desprezo pela mulher, incluindo o aborrecimento, que se infiltrou o afã de dominação e todo o tipo de abusos, especialmente sexuais. Não é possível compreender tais comportamentos prepotentes sem ouvir os Padres da Igreja a proclamar a abjecção da mulher e do sexo. Assim se explica, também, que as principais vítimas, aos milhares, da Santa Inquisição fossem mulheres, arrastadas para a fogueira como bruxas ou portadoras de pecado.

Tinha dito, por exemplo, São João Damasceno: "A mulher é uma burra teimosa, um terrível verme no coração do homem, filha da mentira, sentinela do inferno." E São. Tomás de Aquino: "A mulher é um homem falhado. Um ser ocasional: apenas o homem foi criado à imagem de Deus." Ou Alberto Magno: "A mulher é um homem ilegítimo e tem a natureza incorrecta e defeituosa". Mesmo o grande Agostinho, bispo de Hipona, defendeu que "o marido ama a mulher porque ela é a sua esposa, mas odeia-a porque ela é mulher," e que "nada há tão poderoso para degradar o espírito de um homem como as carícias de uma mulher". Falava por experiência própria? Pai de um rapaz a que chamou Deodato (dada por Deus), repudiou a mãe sem contemplações, para fazer carreira eclesiástica.

Outra música é a homossexualidade entre o clero quando se torna um sinal de poder ou antecâmara de abusos pedófilos. Defende Ramon Teja, presidente da Sociedade de Ciências da Religião e catedrático de História Antiga da Universidade de Cantábria: "Era lugar comum na literatura ascética da antiguidade que o declínio do monaquismo foi causado pela presença de jovens nos mosteiros. Advertiam-no os Padres do deserto com ditos como este: «Um diabo foi bater à porta de um mosteiro e veio um jovem abrir. O diabo, ao vê-lo, disse: ‘Se estás tu aqui, não há necessidade de mim’. Para os monges, os jovens, mais do que as mulheres, são uma armadilha do diabo. " Outro dito da época: "Onde há vinho e jovens não é preciso Satanás."

Teja vê nos casos de abuso um fio condutor comum: a ideia de que o sexo não encaixa bem com o sagrado. "Não encontrei textos que reflictam maior tolerância em relação à fornicação homossexual do que em relação à heterossexual, mas é reveladora esta sentença que parece reflectir uma certa gradação de pecados: 'O monge não deve cultivar a amizade com um jovem nem o trato com uma mulher, nem ter amizade com um herege".

As coisas não melhoraram na actualidade. Ainda em 2001, o teólogo redentorista Marciano Vidal foi punido pela Congregação para a Doutrina da Fé (antigo Santo Ofício da Inquisição) por considerar a sexualidade humana como "um privilégio da natureza" (a pessoa, um ser sexuado, uma forma de percepcionar o outro, etc), e por entender as relações pré-nupciais, a homossexualidade ou a masturbação. A severa notificação inquisitorial contra o grande moralista espanhol tem a assinatura do Cardeal Joseph Ratzinger, actualmente Bento XVI.

O livro de Marciano Vidal Moral de atitudes é uma referência imprescindível para a compreensão das agitadas relações do cristianismo com o sexo e a mulher. Vidal recorda em Moral do amor e da sexualidade que "castidade" vem de "castigo" (que "a razão impõe à concupiscência domando-a como a uma criança", escreve São Tomás de Aquino).

Marciano Vidal, naturalmente, sublinha a clemência com que o bom Santo Afonso contempla um decote (ubera) de mulher. "Pectus non est para vehementer provocans ad lasciviam" ("O peito não é parte que provoque veementemente a lascívia"), escreve o fundador dos Redentoristas. Há uma simpática história do Papa João XXIII ante a exuberante Sofia Loren. Quando ele era núncio em Paris, o carismático Papa do Concílio Vaticano II encontrou-se numa cerimónia oficial com a actriz italiana, que usava generoso decote. "Benedetto, quel Calvario!", suspirou com sorriso desarmante, para regozijo dos presentes. Foi beatificado por João Paulo II, em 2000.

O argumento libidinoso, usa-se muitas vezes para afastar a mulher do sacerdócio. Recorda-o Umberto Eco ao cardeal Carlo Maria Martini, no diálogo publicado com o título Em que crêem os que não crêem? Eco diz ao cardeal que Tomás de Aquino usa o argumento propter libidinem (por causa da luxúria), porque se o sacerdote fosse mulher, os fiéis (homens) se excitariam ao vê-la. Rebate Eco: "Uma vez que os fiéis são também as mulheres, o que é que acontece então com as miuditas que poderiam excitar-se ao ver um padre bonitão?" O autor de O Nome da Rosa recorda ao prelado as páginas de Stendhal na Cartuxa de Parma sobre os fenómenos de incontinência passional suscitados pelos sermões de Fabrizio del Dongo.

[traduzido, por Ai meu Deus, do el País]

escrito por ai.valhamedeus

1 comentário(s). Ler/reagir:

José Dasilva, PhD disse...

Li este artigo a dez mil metros de altura, mais ou menos à hora em que 228 pessoas estavam a mergulhar no atlântico, no ventre de un airbus da Air France.
E pensava eu: Portugal é realmente um país de brandos costumes. Já todos os países desnudaram o seu passado de seminários e sacristias dominados por pedófilos. Portugal... NADA.
Porque:
A) Protegido por Fátima, Portugal esconde o lixo debaixo do tapete.
B) Jornalistas às voltas com o fantasma do desemprego, olham para o outro lado.
C) Cardeal Policarpo, sempre atento à manutenção do seu poder e ego, arma-se em distraído.
4) Todas as anteriores.