Tenho uma amiga
[confessadamente católica, apostólica, romana]
que justifica a sua aceitação e busca intensa do prazer sexual com uma teoria, no mínimo curiosa: Deus criou-nos para que sejamos felizes; e a realização da nossa felicidade passa pelo prazer sexual. Quanto mais felizes, melhor.
Lembrei-me dela ao passar os olhos pelo 1º livro de uma colecção que está a ser distribuída com a revista Visão: Emmanuelle
[esse mesmo! aquele que deu origem ao "célebre" filme].
Como leitura de Domingo, transcrevo algumas linhas sobre a moral e o prazer, iniciadas por uma intervenção da própria Emmanuelle
[o negrito é da minha responsabilidade]:
— [...] prefiro pensar no amor como um prazer. Aliás, fazer amor nunca me cansou.
Mario inclinou-se cortesmente.
— Não duvido — disse ele.
— Será imoral ter prazer no amor? — importunou-o ela.
— É bem o contrário que tento demonstrar-lhe. — respondeu ele pacientemente. — A moral do erotismo é que o prazer determina a moral.
— Um prazer moral, acho que isso perde uma boa parte do seu sabor.
— Porquê? Não compreendo. — espantou-se Mario. — Será porque identifica o princípio moral com privação, com coerção? Mas se este principio evita ter de se privar seja do que for? Se a obriga a aproveitar a vida? Ah!, compreendo! A ideia de moral enoja-a porque se confunde no seu espírito com a de proibição sexual. Conduta moral, quer dizer: "Luxurioso não serás, de corpo, nem de consentimento; o acto carnal só desejarás no casamento?", não é? Não deixe, peço-lhe, estas mistificações comprometerem aos seus olhos a honrosa palavra de moral. Não se baseie numa fraude histórica, superada há muito tempo, para reunir numa só condenação o bem e o mal; ou, o que seria mais grave ainda, para dizer que o bem e o mal não existem!
— Ouça, Mario, está-se a tornar cada vez mais sibilino. Como quer que eu saiba aonde quer chegar? Partiu do erotismo e acaba por falar como um pregador de um púlpito! Não o consigo seguir. O que é que chama de bem e de mal?
— Voltaremos a este assunto, não se preocupe! O que desejo primeiro que tudo discutir é a ideia que os outros têm do bem e do mal. E, particularmente, estas "virtudes" que, para si, segundo parece, são o mesmo que a moral: a modéstia, a castidade, a continência, a fidelidade conjugal...
— Não só para mim! Não é o que toda a gente chama moral?
— Eu sei. Mas eu rio-me disso! Pois foi através de um abuso de confiança, de uma rara pantomima, que os tabus sexuais se fizeram admitir no reino da moral e terminaram por fazer reinar a sua lei injusta. Não lhes assistia qualquer direito divino. Antes pelo contrário! A sua natureza e o seu objectivo são perfeitamente imorais, já que surgiram de um cálculo do mais prosaico: a preocupação de assegurar ao senhor feudal a propriedade das crianças, dos instrumentos de produção e dos sinais exteriores de riqueza à semelhança dos machados de sílex e dos tachos de barro.
Mario levantou-se de um salto e dirigiu-se para uma prateleira carregada de livros, na penumbra escarlate. Voltou trazendo na mão um volume de capa de couro e ferragens.
— Ouça! — disse ele. — Eu não escolho abusivamente os meus textos nem os leio pelas entrelinhas. Limito-me ao mais irrefutável dos dogmas, ao Decálogo, tal como foi transmitido no Sinai por Moisés. E no décimo sétimo versículo do capítulo vigésimo do Êxodo, eu li, gravado na pedra, o seguinte: "Não cobiçarás a casa do próximo; não cobiçarás a mulher do próximo, nem o seu servente, nem a sua servente, nem o seu boi, nem o seu asno, nem nada do que pertence ao próximo". E aqui não há qualquer equívoco ou dissimulação: mulher, esse é o lugar onde te colocou o Eterno: entre o campo e o gado, com o resto da mão-de-obra. E de modo algum na primeira fila! Como senhora, estás depois do tijolo e da palha. Como serva, vales menos do que um rapaz de estribaria, só um pouco mais que um animal de chifre ou um burro.
Mario fechou a sua Bíblia e colocou a mão direita sobre Emmanuelle, numa atitude pastoral:
— A Idade Média inventou o amor, diz-se. A Idade Média antes quase conseguiu que nos meta nojo! Se, hoje, o amor tem uma oportunidade de reviver, é porque a nossa época fez uma hecatombe de mitos. Com o presente envenenado da sua "moral", o sábio feudal pensou privar-nos por séculos e séculos do desejo de gozar. Veja o que resta das suas conspirações e das suas máquinas! Os cintos de castidade do bem e do mal, afivelados pelos senhores da terra à volta das cinturas das suas mulheres e das suas mulas, caem aos pedaços enferrujados das ameias e dos matacães que os viram nascer. Mas, observemos antes que o seu fim é eminentemente moral, apesar de o seu nascimento não o ter sido! E admiremos que a verdadeira moral é a que subsiste quando a obra do tempo fez justiça sobre a falsa.
Uma gargalhada irónica escapou-se da sua garganta:
— O mais edificante dos valores da moralidade sexual não está inteiramente resumido na aventura da palavra latina pulla, que originou, em francês, as palavras pucelle (donzela) e poule (galinha)? Vê como a escolha entre bem e mal se fez com uma pequena diferença. Também poderia ter ocorrido o inverso: que ser uma poule fosse a honra e a virtude supremas e manter-se pucelle um crime contra Deus e contra a Igreja!
Emmanuelle estava sonhadora. Aprovava o julgamento de Mario sobre o valor contingente dos imperativos da moral tradicional, mas então, nesse caso, justamente, porquê perder o tempo a construir uma nova ética sobre as ruínas da antiga? Não se podia fazer amor à vontade, livremente, sem se matar à procura de um novo código e a anunciá-lo ao mundo? Era verdadeiramente indispensável haver leis? Não existia nenhuma moral, mesmo que fosse "erótica", pensava Emmanuelle, que fosse melhor do prescindir totalmente dela.
— Não se triunfa sobre as más leis pela anarquia. — retorquiu Mario quando ela lhe confiou as suas dúvidas. — Não se trata de voltar à selva mas de reconhecer que alguns dos poderes do homem, que a sociedade actual recusa e condena à atrofia, são justos e que proporcionam à nossa espécie os meios de felicidade. A nova lei, a boa lei, proclama simplesmente que é bonito e bom fazer bem amor e fazê-lo livremente; que a virgindade não é uma virtude, nem o casal um limite, nem o casamento uma prisão; que a arte de gozar é o que importa e que não é suficiente nunca se recusar, que é preciso oferecer-se constantemente, dar-se, unir o seu corpo sempre a mais corpos e dar por perdidas as horas passadas fora dos seus braços.
E acrescentou, com o indicador levantado:
— Se a esta lei me ouvir mais tarde juntar outras, lembre-se que elas não constituem mais que as disposições secundárias, destinadas a ajudar a observação do princípio que venho a citar, prevenindo a timidez do espírito e a lassidão da carne.
— Mas, — disse Emmanuelle, — se os tabus da moral burguesa são de origem económica, a implantação da sua moral erótica exige uma verdadeira revolução. Terá alguma coisa a ver com o comunismo?
— De modo nenhum! É muito mais importante e muito mais radical. É qualquer coisa como a mutação pela qual o peixe cansado do mar, que devia chamar-se um dia Emmanuelle, quis saber se o gosto novo da terra lhe faria crescer pernas e se pôs a respirar agitando os seus futuros seios...
Ela sorriu com a evocação.
— O homem erótico será então um novo animal?
— Será mais do que o homem e será, no entanto, ainda o homem. Simplesmente mais adulto, mais avançado na escala da evolução. É — eu dizia-lhe há pouco — a aparição da arte nas paredes das suas cavernas que permite reconhecer o momento em que o primeiro homem se distinguiu do último macaco. Aproxima-se o dia em que, tal como os valores artísticos separaram o homem do animal, os valores do erotismo separarão o homem glorioso do homem envergonhado que se enterra nos atoleiros da sociedade actual, escondendo a sua nudez e castigando o seu sexo. Ainda somos pobres projectos humanos, esboços ainda cobertos com a lama dos pântanos pleistocenos! Apaixonados pelas nossas inibições, enamorados dos nossos duros sofrimentos, lutando com toda a nossa cegueira e com todas as nossas forças de toscos evangélicos contra as correntes de esperança que tentam arrancar-nos da infância!escrito por ai.valhamedeus
3 comentário(s). Ler/reagir:
A nossa prof de antropologia ensinou-nos (a quem?...) que a grande revolução sexual dos últimos tempos, deve-se à pilula anti-concepcional anatematizada pela igreja e ao viagra. Sobre este último, agora que se comemorou o seu 10º aniversário não condignamente comemorado no aijesu (se o foi desculpem minha desatenção), li em jornal de fim de semana “os efeitos devastadores que teve na vida de muitos casais, seja nos homens que, energizados, trocaram as mulheres por outras mais novas, ou na catrefada de DSTs, explico (tenho muitos médicos na família, pois!) -doenças sexualmente transmissíveis- apanhadas pelos cidadãos seniores”.
Agora digo eu com propriedade, o homem erótico referido na Emmanuelle é finalmente o verdadeiro Homo Erectus
Não é necessário ter médicos na família. Basta ler os jornais.
A propósito, antes dos adjectivos possessivos não se usa o artigo definido. Eu, pelo menos aprendi que sim.
A menos que este Alberto seja brasileiro. Aí já me calo.
Escreve-se sobre a Emmanuelle e é o que se vê (imagina-se). logo aparecem o artigo, o definido e nem o possessivo escapou! Seus espreitas.
Gramática e prazer conjugam?
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