Que é que nos leva a dizer de certas obras que são literatura?
O texto de Augusto Abelaira a seguir reproduzido começa com esta interrogação -- e termina com várias outras. Pelo meio, problematizações muito interessantes do fenómeno literário. Mais perguntas do que respostas, que o saudoso Augusto Abelaira publicou na sua secção Ao Pé das Letras, no JL nº 104, de 3 a 9 de Julho de 1984.
Que é que nos leva a dizer de certas obras que são literatura, negando a outras igual classificação? Falar na qualidade nada resolve, como se sabe. E a pergunta torna-se ainda mais perturbadora se considerarmos que um texto, o mesmo texto, pode começar por não ser literatura e, depois, transformar-se nela.
Dou um exemplo: em A Queda dum Anjo encontramos alguns parágrafos geniais, incluídos no discurso que uma das personagens da novela pronuncia no parlamento. Mas quando acabamos a leitura, fascinados pela arte de Camilo, caímos das nuvens: o autor confessa que se limitou a transcrever de um ministro da Justiça aqueles parágrafos.
E aqui está: aquele mesmo texto que, escrito pelo ministro, não era literatura mas um conjunto de disparates, transformou-se em literatura. Apenas porque foi transcrito por um grande escritor e porque mudou de local? Que diabo, as frases não são exactamente as mesmas? As coisas podem ser e deixar de ser assim tão simplesmente?
Exemplo às avessas, o panfleto de Swift a aconselhar que se comessem as crianças irlandesas, ainda hoje considerado uma obra-prima literária. Mas se supusermos que ele foi escrito «a sério», então deixará de ser uma obra-prima literária.
Simplesmente: como sabemos nós que não foi escrito «a sério» ou que a sua seriedade se coloca num plano estranho à seriedade habitual? A verdade é que no referido texto nada se diz sobre isso e temos de recorrer a outras fontes. Donde concluo: para saber se uma dada obra é ou não literatura necessitamos de informações suplementares, fora do texto, que nos expliquem as intenções do autor e as condições em que foram publicadas? Esta resposta que articulo sob forma interrogativa parece-me algo insatisfatória, mas, francamente, não conheço outra.
O Diário da República acaba de publicar um louvor do ministro José Augusto Seabra. Como todos os louvores, louva. Quem? Duas pobres criancinhas, «pela coragem e abnegação que demonstraram no cumprimento de um dever legal e cívico» — o que as obriga a andar quatro horas a pé, todos os dias, «correndo riscos de saúde e de vida». De certo porque previamente se informou de que elas cumprem esse dever espontaneamente e não sob a ameaça de castigos paternos, o ministro oferece-lhes além do louvor os livros e o material didáctico necessários, já que oferecer-lhes um autocarro seria excessivo.
Ora bem: o gesto e a prosa de Seabra, em si mesmos, também são dignos de louvor, mas o texto, ao fim e ao cabo, não consegue ser literatura. Provoca uma certa emoção, talvez mesmo algum espanto (esse espanto que está na base da filosofia, como afirmava Aristóteles), mas não é literatura. E todavia...
Suponha-se que não foi escrito «a sério», que não foi publicado por um ministro no Diário da República. Que foi escrito pelo mesmo José Augusto Seabra para caricaturar um ministro e, então, ele passará a ser literatura e da boa; reveladora até de um grande sentido do humor. Como José Augusto Seabra também é escritor, ele poderá perfeitamente publicá-lo mais tarde, fora do presente contexto, nas suas obras completas — e será literatura. Digamos que é um texto recuperável se nos esquecermos das condições em que foi publicado e das intenções que o ditaram.
E de novo pergunto: que é que nos leva a dizer de certos textos que são literatura, negando a outros (às vezes ao mesmo) essa classificação?
Não estaremos em condições de julgar A Ilíada, pois ignoramos as condições em que foi escrita (ou recitada)? Não nos basta ler A Ilíada para saber se estamos perante uma obra literária (que deveremos admirar) ou uma obra não literária (que não deveremos admirar)? O segredo não está no texto mas fora do texto?
[clicar na imagem, para ler]
escrito por ai.valhamedeus
0 comentário(s). Ler/reagir:
Enviar um comentário