Para não esquecer...

POIS!... [estórias exemplares] -35- carnavais, câes (e) sem abrigo

Nesta quadra carnavalesca em que por detrás de uma máscara, seja ela artesanal ou alugada, mesmo comprada, tudo (ou quase tudo) é permitido, o povoléu vem para a rua dar largas a piadas ao establishment, e não só. Ou simplesmente “brincar ao Carnaval” -- com maiúscula ordena o meu computador -- por tradição, pois nesta época ninguém “leva a mal”. E o que se pode dizer e fazer atrás de uma máscara, Santo Deus!

Por acaso, este ano, o tempo de todas as tolices, mais ou menos toleradas pelos mais sisudos, coincidiu com o Dia dos Namorados. O que até nem destoa, já que aos namorados tudo se perdoa e, afinal, eles nem são de fiar, como dizia o Solnado! Ou eram os Noivos? Tanto faz.

O que eu quero dizer, é que este ano o São Pedro não se mostrou nada folião. Muito ao invés, esteve carrancudo, enviando chuva para amainar os ardores do Carnaval em tempo de crise.

Porém, os foliões não se deixaram intimidar e resistiram com galhardia! Um tanto molhada.

Em tempo de guerra não se limpam armas, há que usar a imaginação e, vai daí, os trajes chegaram aos legumes que, verdejantes, cobriam e protegiam da intempérie uma foliona a anos-luz dos seus verdes anos, como se viu em reportagem alargada e obrigatória para ocupar tempo de antena a preço de saldo, e para encher chouriços. Mas deve-se dar voz ao povo, não é? Voz do povo, voz de Deus! Diz o ditado. Pois!

Longe das objectivas dos repórteres encartados, e dos cortejos dos Carnavais mais portugueses de Portugal
(que são cada vez mais),
cheios de gente despida para enregelar, um lulu todo branquela, tipo espanador, sapatinhos azuis a condizer com a sobrepeliz de padrão escocês, trotava atrás da dona, todo ufano, numa rua da (já?) capital do Algarve. Indiferente à chuva e ao rafeiro enrolado num trapo encardido, de proveniência mais que duvidosa, ao colo do dono, de barba hirsuta e olhar perdido, sentado estrategicamente, deve ter pensado ele, à porta de um supermercado. Com a boina em frente vazia de magros cêntimos.

Enquadrados, cão e dono, por lojas de chineses cheias de clientes a tentar a compra de máscaras de última hora ao preço da chuva!

[Faro, 3ª Feira de Carnaval]

escrito por Gabriela Correia, Faro

3 comentário(s). Ler/reagir:

Anónimo disse...

Ai,valha-me o Santo Acordo Ortográfico! Cães já mudou a qualidade do acento? Ou virou chapéu por causa da chuva que quis também entrar na folia? Ih, ih, ih!
Obrigada pelas imagens que ilustram o texto.
Gabriela
P.S. E não leve a mal o reparo!
Abraço

Anónimo disse...

hummm... se os acentos têm qualidades, os fonemas terão defeitos e os morfemas, vícios?
Repare, agora reparo, a quem repara o reparo? Auto-reparo?

«Virou chapéu» nos cães? Nos vira lata, problema reparado, e seguiria na onda do Santo Acordo Brasileiro!
Ou na carnavalização da linguagem!

jcosta disse...

Para a Drª Gabriela, santa protectora da língua e de outras substâncias, com ou sem acordo d'aquém e d'além mar, aqui fica um naco de prosa d' O,Neill:

O ATRO ABISMO

Quando o poeta escreveu: "...o atro abismo",
Umas vírgulas por ele mal dispostas,
Irritadas gritaram: "É estrabismo!".

Mas um ponto que viveu no dicionário,
De admiração caíu de costas
E abismado seguiu o seu destino...


Alexandre O'Neill, in Poesias Completas, Ed. Imprensa nacional - casa da Moeda p.95

Com resiliencia (que não apetece pôr-lhe o chapéu e já sei que a senhora lho porá. Porá?)