Para não esquecer...

ANTÍGONA

Ontem e anteontem, 29 e 30 de Abril, o Teatro Nacional São João trouxe ao Teatro Viriato de Viseu o drama de Antígona, no texto porventura mais lido
[o de Sófocles. Há diferenças entre as várias versões: por exemplo, na versão de Sófocles a infeliz heroína é condenada à morte antes de casar, enquanto que, na de Eurípides, partilha o leito com o filho de Creonte, de quem virá a ter descendência].
O núcleo do argumento da obra pode ser resumido assim:
Antígona é surpreendida a sepultar o seu próprio irmão Polinices, desobedecendo deste modo às ordens expressas de Creonte, rei de Tebas e seu tio. Este proibira, como castigo pela traição, que o cadáver do sobrinho fosse enterrado, ameaçando com pena de morte quem contrariasse essa ordem. Antígona, porém, opta por obedecer às leis dos deuses e Creonte manda que ela seja enterrada viva.
O problema principal da tragédia
[há outros, e alguns relacionados com este: o do poder e da democracia é igualmente muito forte. O amor, também: o de Antígona, pela família; o do noivo de Antígona: Hémon, filho de Creonte, suicida-se, perante a perda da noiva; da mãe de Hémon: ao saber da morte do filho, Eurídice suicida-se também]
é o problema da lei -- da legitimidade da lei, se quisermos, da justiça: a lei humana
(que, aqui, proíbe enterrar traidores dentro da cidade)
é contrastada com a lei divina
(assumida por Antígona e de cuja infracção Creonte receberá as trágicas consequências: designadamente, a perda do filho e da mulher).
O confronto é vivamente expresso quando, explicando por que não tinha respeitado as leis do rei de Tebas, Antígona se justifica:
É que essas não foi Zeus quem as promulgou, nem a Justiça, que coabita com os deuses infernais, estabeleceu tais leis para os homens. E eu entendi que os teus éditos não tinham tal poder, que um mortal pudesse sobrelevar os preceitos, não escritos, mas imutáveis, dos deuses. Porque esses não são de agora, nem de ontem, mas vigoram sempre, e ninguém sabe quando surgiram. Por causa das tuas leis, não queria eu ser castigada perante os deuses, por ter temido a decisão de um homem. (vv 450-458. Versão de Maria Helena da Rocha Pereira, edição da Fundação Calouste Gulbenkian. Negrito meu)
A questão é a de saber se existem leis superiores às leis humanas, a que estas devam ser submetidas, uma vez que seria naquelas que estas se fundamentariam. Visto de uma perspectiva não tão religiosa como a de Sófocles
(como a dos gregos),
este problema tem fronteiras com outros:
  • com o da desobediência civil, por exemplo. A desobediência civil é um método de oposição e resistência pacífica ou violenta a um poder político. Haverá fundamento para tal desobediência? A resposta poderá ser mais pacífica em regimes não democráticos
    [Creonte aparece na Antígona como um ditador; ainda assim, mesmo em casos de resistência a ditaduras, cabe perguntar onde é que essa resistência encontra justificação: haverá outra, para além do(s) deus(es)?];
    em democracia, é (ainda) mais complexa: não será a desobediência civil uma ameaça à democracia? onde se poderá apoiar a rejeição de uma lei democraticamente estabelecida?

  • com o da objecção de consciência: os objectores de consciência seguem princípios religiosos, morais ou éticos que são incompatíveis com (e por isso rejeitam) o serviço militar, ou as Forças Armadas como uma organização combatente ou o cumprimento de alguma norma jurídica específica. Que "leis" justificam esta rejeição pessoal de leis estabelecidas?
escrito por ai.valhamedeus

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