Para não esquecer...

hoje é sábado 119 RETRATO DA RAPARIGA

Muito hirta de pé no patamar do sono
Contornando sem pressa a curva de uma artéria
Por mais ocasional que fosse o nosso encontro
dava-me a entender que estava à minha espera
Com um livro na mão com um lenço ao pescoço
uma expressão cansada a palidez inquieta
de que andasse ao vento ou trouxesse no rosto
em vez de pó de arroz um pó de biblioteca

Surgia de repente onde sempre estivera
em Zurique em Paris em Liège em Colónia
Por único endereço uma carreira aérea
Mas não sei se era louca ou apenas mitómana
Onde quer que eu a visse uma coisa era certa
Numa rua num bar num museu numa doca
dava-me a entender que estava à minha espera
dava-me a entender que se chamava Europa.
[David Mourão-Ferreira, in Obra Poética 1948-1988]


escrito por Carlos M. E. Lopes

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