Para não esquecer...

hoje é sábado 325. VIVER SEMPRE TAMBÉM CANSA

Viver sempre também cansa! 
O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinza, negro, quase verde...
Mas nunca tem a cor inesperada. 
O Mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes. 
As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua. 
Tudo é igual, mecânico e exacto. 
Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação. 
E há bairros miseráveis, sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida... 
E obrigam-me a viver até à Morte! 
Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois, achando tudo mais novo? 
Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte. 
Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
"Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela." 
E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo...
[Ferreira, José Gomes, Poeta Militante, 1 volume, Moraes Editores, Lisboa, 1977, pág. 15]

escrito por Carlos M. E. Lopes

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