Karl Kraus, judeu austríaco, dava muitas palestras em Viena e encantou Elias Canetti e, sobretudo, a mulher deste, Veza. NA sua autobiografia Elias Canetti faz-lhe inúmeras referências e sobretudo relata a paixão da sua futura mulher pelo satírico, jornalista, ensaísta, dramaturgo, poeta e mais.
Nesta Grande Época são publicadas sátiras escolhidas. Aqui vai o cheirinho de uma:
Nunca fiz segredo que os anúncios de preservativos são o único contributo decente, racional e de bom gosto que a imprensa tem para mostrar ano após ano. Mas como ela não é desta opinião e nega de graça na página da frente o que defende nas páginas de trás a troco de dinheiro, “aquele” anúncio, como diz a moral, é uma imagem repelente, agravada no caso em que, como marca registada, apresenta um oficial que, para tornar a coisa mais apetitosa, afaga o bigode. Essa marca é “Olla”. Um problema de utilidade social aprofunda-se com a ideia desmedidamente feia de que os assinantes da Newe Freie Presse façam uso da recomendação. E, efetivamente, pode ler-se em letras gordas:
10 000 “Olla” grátis! Para disponibilizar “Olla” a todas as camadas do estimado público e convencer os consumidores…nenhuma outra marca atinge nem de perto…decidimos fornecer a todos os interessados que nos deem o seu endereço completo (nome e profissão) um exemplar grátis, sem despesas de porte…
A dimensão visual desta ideia é de cortar a respiração. Agora todos têm ar de ter aproveitado a oferta, os cavalheiros no picadeiro, na plateia e em toda a parte onde reina a alegria de viver. Acresce a certeza de que a firma, se desatar um pouco mais os cordões à bolsa, pode impor a relação nominal de cada um dos dez mil recipientes encantados naquele local onde, normalmente, se pode apresentar condolências. É que a moralidade só se instala nas páginas da frente porque alugar essas rubricas seria demasiado caro para as empresas de borracha. Mas talvez lhes baste fazer-se entender também nas páginas de trás pelas camadas inteligentes do público e indemnizá-las da forma mais apropriada pela perda da Mona Lisa…quando eles rezam assim a sua prece – a única de que ainda são capazes – naquele único momento em que a sua inteligência está desligada – nos prazeres incestuosos das suas camas, ali onde o rei da borracha se ajoelha para rezar – eu seria Hamlet que chegasse para não estar com cerimónias!
[Kraus, Karl, Nesta Grande Época, sátiras escolhidas, Relógio D´Água, Lisboa, 2018, pág. 91-92]escrito por Carlos M. E. Lopes
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