Para não esquecer...

ENSAIO SOBRE A SURDEZ



Quem me conhece sabe que tenho um fraquinho pelo Maestro António Victorino D´Almeida. Até porque o conheço. Acho-o genial e nunca me desiludiu. É um comunicador como poucos, um executante genial (apesar de não ser concertista) e um improvisador fabuloso.

O Maestro publicou recentemente ENSAIO SOBRE A SURDEZ. Neste ensaio ele confirma aquilo que já tem dito e escrito e dito muitas vezes: detesta a “rokalhada”. Transcrevo uma página que dá ideia do que pensa sobre os superconcertos:
A marcha decidida do vocalista interrompe-se abruptamente no momento de se dirigir verbalmente ao público em frases curtas, muito sucintas, mas carregadas, na intenção, de um profundo sentido humanista, tais como… Hello, fiends! 
E o entusiasmo dos assistentes recrudesce, ainda mais, se possível, ao retorquirem com vários vocábulos e até algumas frases que raras vezes se tornam perceptíveis, no meio do monumental alarido, conquanto se possa intuir que estão a reclamar este ou aquele número musical da sua prelecção. 
Enganam-se, porém, pois esse é o momento em que o vocalista costuma manifestar uma opinião política incisiva e eficaz a que ninguém irá opor qualquer espécie de contraditório: todos são unânimes a desejar paz ao mundo e também a considerar que determinado estadista de carácter mais belicoso – no qual muitos já terão votado e talvez até voltem a votar, mas isso é outra questão… - se tem revelado, para todos os efeitos, uma grandíssima besta. 
Mas ainda, quanto maior for a dureza da adjectivação  - podendo ir até à obscenidade meio rosnada -, maior será o impacto desse momento de intervenção política, ao qual se segue, num espasmo de euforia emotiva, a canção mais desejada e mais apropriada, até pelo contraste das situações, de teor alegadamente romântico. 
As feições do vocalista contorcem-se durante a interpretação como se fosse um filme em câmara lenta das bochechas de um pugilista durante a saraivada de socos que o levará ao tapete e daí talvez até ao hospital, e o público, ainda que sem nunca abandonar os pulinhos, agita os braços numa ondulação mais alargada, com isqueiros (ou mais recentemente telemóveis) iluminados nas mãos. 
É um efeito que já vem do passado – bastando lembrar as procissões das velas, acusadas pelos defensores da pura religiosidade de constituírem manifestações de carácter idólatra -, mas que se transformaram em tradição e num espectáculo propício a despertar diversos tipos de comoção.” (págs. 41-42). 
Mais à frente, face a uma apresentação num programa de televisão, achou a situação tão absurda que se sentiu, com um colega, “uma espécie de colecionadores de borboletas vesgas”.

A sua admiração por Boulez, como maestro, é quase o oposto dos méritos como compositor “mais hirto nos conceitos do que um doente com espondilose aguda” (pág. 186).  

Sobre John Cage, Victorino D´Almeida fala que a grande obra deste compositor são 4 minutos e 33 segundos de absoluto silêncio. Mas Victorino D´Almeida aproveita para falar de inúmeros compositores (alguns que eu desconhecia em absoluto) e de compositores portugueses.

O livro é um desabafo e um voo sobre a música, com um humor corrosivo. A ler com atenção, por detrás de uma aparente superficialidade está uma reflexão muito séria.

escrito por Carlos M. E. Lopes

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