Organizar uma biblioteca é um modo silencioso de exercer a arte da crítica,
dizia Jorge Luís Borges.
Sem dúvida que se fazem escolhas, por vezes muito subjetivas, procurando sempre a maior objetividade, dentro de uma lógica que se pretende eficaz na recuperação do que se procura.
Um amigo espalhou os seus 5.000 livros por três salas e argumentava,
não posso colocar Júlio Dantas perto de Almada Negreiros, Ramalho junto a Antero e por aí adiante. Fundamental na biblioteca que os livros se sintam confortáveis, entre amigos e possam descansar sem temores. Que venham para as nossas mãos com prazer sem queixume. Os livros têm vida, conversam, quando mal colocados adoecem e não se deixam ler.
A propósito deste assunto, lembrei-me de um texto do livro de Gonçalo M. Tavares, O senhor Juarroz:
O senhor Juarroz gostava de organizar a sua biblioteca de maneira secreta. Ninguém gosta de revelar segredos íntimos.
O senhor Juarroz primeiro organizara a biblioteca por ordem alfabética do título de cada livro. Rapidamente, porém, foi descoberto.
O senhor Juarroz organizou depois a sua biblioteca por ordem alfabética, mas tendo em conta a primeira palavra de cada livro.
Foi mais difícil, mas ao fim de algum tempo alguém disse: já sei!
A seguir o senhor Juarroz reordenou a biblioteca, mas agora por ordem alfabética da milésima palavra de cada livro.
Há no mundo pessoas muito perseverantes, e uma delas, depois de muito investigar, disse: já sei!
No dia seguinte, assumindo este jogo como decisivo, o senhor Juarroz decidiu arrumar a biblioteca a partir de uma progressão matemática complexa que envolvia a ordem alfabética de uma determinada palavra e o teorema de Godel.
Assim, para estranheza de muitos, a biblioteca do senhor Juarroz começou a ser visitada, não por entusiastas da leitura, mas por matemáticos. Alguns passaram tardes a abrir os livros e a ler certas palavras, utilizando o computador para longos cálculos, tentando assim encontrar a todo o custo a equação matemática capaz de desvendar a organização da biblioteca do senhor Juarroz. Era, no fundo, um trabalho de descoberta da lógica de uma série, semelhante a 2 1 9 1 30 1 93.
Pois bem, passaram dois, três, quatro meses, mas chegou o dia. Um reputado matemático, completamente vermelho e eufórico, segurando, na mão direita, um bloco gigante coberto de números, disse: Já sei! E apresentou depois a fórmula da série que baseava a organização da biblioteca.
O senhor Juarroz ficou desanimado e decidiu desistir do jogo. Basta!
No dia seguinte pediu à sua esposa para organizar a biblioteca como bem entendesse. Por ele estava farto.
Assim foi. Nunca mais ninguém descobriu a lógica da organização da biblioteca do senhor Juarroz.
[O senhor Juarroz. Gonçalo M. Tavares, ed. Caminho, 2004]
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