Para não esquecer...

07
out
2020

MEMÓRIAS SOLTAS * XVII. o Zé Cavaco

José Cavaco dos Santos Júnior era um dos homens mais interessantes da minha aldeia. Teria a quarta classe, mas era senhor de um acervo vocabular que muitos licenciados não têm. Vivendo no campo e do campo, a cerca de dois quilómetros da aldeia, o Zé Cavaco não tinha ar de camponês, antes parecendo um urbano. O pai, que conheci, viva na casa pegada à minha, hoje na Rua do Forno. 

O Zé Cavaco escrevia para o Povo Algarvio, como correspondente em Santo Estêvão e fazia, amiúde, programas das festas na aldeia. Era eu muito novo quando me vi confrontado com o vocábulo vespertina. Tive de ir ao dicionário. Eu sabia lá o que era isso. Bom orador, pelava-se por um discurso onde se saía muito bem e não havia na freguesia e fora dela quem se lhe chegasse aos calcanhares. Tinha uma bonita voz. Tocava banjo, ainda que o meu pai (muito amigo dele) dissesse que tocava mal. Contava histórias como ninguém. Vaidoso, tinha muita falta de vista, mas nunca quis usar óculos. Era casado com a Celeste, ainda viva e com noventa e muitos anos. Rafael Correia entrevistou-o, julgo que mais de uma vez, para o Lugar ao Sul.

Na freguesia não havia lugar para ele no grupo de políticos locais. Os lugares eram ocupados pelo Macedo, Jaime, Florentino, Ventura e poucos mais. O Zé Cavaco não pertencia ao grupo.

Mas em 1973 chegou a sua vez. Foi nomeado regedor da freguesia e o meu pai vice regedor. Foi um momento de glória inesquecível. Lá ia ele pregar os editais para as inspeções militares, encargo que cumpria com uma enorme alegria e vaidade. Foi ele que arrombou a porta do Ti Pintassilgo quando este morreu. Era um agente dedicado e esforçado.

Um dia, a Sociedade Recreativa inaugurou a luz elétrica e o Zé Cavaco fez um discurso vibrante e emotivo a enaltecer o trabalho que tinha tido. Inesquecível. Foi memorável esse discurso.

Na esperança de herdar do sogro para equilibrar as finanças, queixava-se que o homem tinha uma saúde de ferro.

Mas a sua escolha para regedor foi a sua coroa de glória. Reconciliou-se com os mandões e agaloou a função como só ele o sabia fazer. “Pregar editais, ler ofícios, cumprir as obrigações do cargo é tarefa extenuante”. “Nesta festa uniu-se a Junta de freguesia, a ANP e a regedoria”. Escrevia ele.

Contou ele que, no sossego da casa e do leito, falou assim “sabes com quem estás deitada, Celeste? Com o regedor de Santo Estêvão!”. Bom homem, acho eu.

escrito por Carlos M. E. Lopes


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