Para não esquecer...

ANTOLOGIA POÉTICA * 23

O TEMERÁRIO LEVADO AO DESMANTELAMENTO

DE UM QUADRO DE WILLIAM TURNER


Cor do crepúsculo a nau que se rende
parece, na pesada solidão do regresso,
um ancião do mar que se apoia numa criança.
Ferido o flanco de ouro pelo sal das viagens,
regressa à vasta terra que a gerou entre incêndios,
ao fornecedor de ferro das minas sombrias,
aos altos pinhais que lhe deram os seus mastros.

Passou com arrogância sobre intratáveis correntes,
recebeu, como uma árvore, o céu e os pássaros,
uniu brancas orlas que nunca poderão ver-se
e as suas velas cosidas ainda recordam as tempestades,
as raízes de céu, as luminosas mãos.

Um rosto transluz sob esta viagem extrema,
o de um inglês que olha para brumosas praias
e interroga os sulcos que, arados, o tempo
traça sobre as nuvens, os ermos e as almas.

É um triunfo esta viagem do barco para a morte.
O temerário, guiado por ruidosos vapores,
deixa atrás água de heróis e de piratarias,
enseadas de espectros, noites que Joseph Conrad
contará para sempre. Britânicas paixões
onde o planeta inteiro não é mais que um reino de água
que sulcam, desafiadoras, indomáveis rapazes,
argolas de ouro nos lóbulos sobre as negras barbas,
sabres que empunham mãos curtidas pelos ventos,
corações violentos como o mar. Para trás ficam.

E o Temerário estremece, em silêncio, agitando,
eterno numa atmosfera de orgulhoso cansaço,
as águas vermelhas, últimas.


[Ospina, William. "O temerário Levado ao Desmantelamento", in O Mar na Poesia da América Latina, Assírio & Alvim, Lisboa, 1999, p. 27]

escrito por Carlos M. E. Lopes

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