O Lopinhos
Volúvel como o vento, fino como o azeite, antigo embarcadiço, de que lhe provinha tença caroçuda que recebia na Caixa, corria a vida ao Lopinhos em doce remanso, qual saveiro à vela com vento bonacheirão. Uma ou outra patranha avulsa, gabarolice essa sim sem travões e sempre com saias pelo meio, nem sério em demasia nem frívolo por aí além, pimpão no traje e no penteado, era, enfim, um citadino de lei, a quem nem faltava a mândria a presidir ao conjunto. Alegre que nem melro ao romper do dia, nunca se lhe viu alteração de ânimo por ira ou apoquentação que turvasse o contentamento que no rosto lhe luzia. Mesmo a desancar o governo, a justiça, ou o fisco, único métier em que se empenhava com garbo e assiduidade, era mais um ar irónico e condescendente o que mostrava do que as rugas duma irritação genuína, daquelas de arroxear a pele.Avultados motivos de censura encontrava sobretudo no pouco empenho e incompetência que no seu dizer campeavam nos asilos de madraços que eram as repartições. E aí, do chefe à mulher de limpeza, nem cônjuges e progenitores se escapavam de vernáculos enxovalhos. Que só atendiam de trombas, que demoravam semanas, que não sabiam escrever, que não ajudavam ninguém, uns parasitas, galhudos, uns filhos desta e daquela que viviam à custa dele e de quem pagava impostos. Porém, pese embora a bruteza da oração, percebia-se ser ela não mais que declamação sem o menor pingo de fé, pura rábula encenada para engrandecimento próprio.
Ninguém acreditaria que alguma vez o Lopinhos fosse fisgado pela lei. Safo como o conhecíamos e sempre com o braço por cima de advogados e escrivães, mais capaz o imaginávamos de pôr entrelinha em auto e levar absolvição, que de ver-se executado e com fazenda cativa. A ciência que o ilustrava porém, provinha de mundo corrido à toa e com manha indiferenciada, e a justiça somava a essa uns séculos de lábia letrada e com grada especialização. A contenda era desigual, pois, e nela o nosso David nem uma mísera funda tinha...
O caso foi que o Lopinhos, passava já um par de anos, levara multa de trânsito e empinou-se com o polícia. O seu jeito condescendente, em tal circunstância infausta não se aguentou nas canetas e deixou-o embezerrado a invectivar a autoridade por chatear gente honrada em vez de perseguir os gatunos. E à escassa sensatez do sermão ainda acrescentou pela certa (mas isso não relatou) ao currículo do agente pouco abonatório ofício ligado às artes do circo. Ora, quem trilha um vespeiro, o mais certo é ser picado, e o cívico todo ele zunia. Enrolou-o em papel timbrado com o escudo da nação e remeteu-o ao tribunal por injúria à autoridade. Umas coroas ao carteiro convenceram este a devolver à procedência quanto envelope chegava da justiça comarcã endereçado ao Exm.º Senhor Sigismundo Apolinário Lopes, registado e com aviso de recepção, neles apondo o despacho destinatário ausentou-se. Excogitou um tal expediente da doutrina dum cabo da GNR reformado que em tempos lhe afiançara não se poder levar um gajo ao banco dos réus sem que este para tal fosse devidamente intimado. Saiu-lhe furado o intento. Foi julgado à revelia e condenado em multa, indemnização, e mais alcavalas do estilo.
Via-se agora com a rica pensãozinha penhorada e a alma a ferver de indignação. É que com juros e mais acrescentos a coisa montava já a uma soma bem taluda. Crescera a dívida exequenda porque passaram uns aninhos, como lhe esclareceu, com um felzinho na voz, uma árida funcionária.
Abordando o assunto com uns camaradas o Lopinhos vociferava: vocês estão a ver esta merda? Então aqueles calhordas não conseguem notificar um indivíduo, deixam passar um ror de anos sem de nada o avisarem, e depois vem um asno dum juiz e pespega-lhe uma porrada sem lhe permitir defender-se?! Cambada de incompetentes, Santo Deus!
Bom. Ignorantes da mescambilha com o carteiro todos lhe davam razão. Mas o facto é que a estrela do Lopinhos depois de tal episódio ficou um tanto embaciada.
escrito por Rogério Silva
1 comentário(s). Ler/reagir:
mmnnnmnnnnnnmnmnm
Enviar um comentário