UM ÁS DO PEDAL
─ Bom, bom, mas mesmo bom, foi aqui o mestre Duarte…
E o Palhinhas barbeiro suspendeu, pela enésima vez, o corte de cabelo, para apontar com a tesoura gasta, num gesto largo que prolongava a ênfase da fala, na direcção do mestre Duarte.
Este tinha afivelado, de orelha a orelha, um ancho sorriso: dir-se-ia que repassado de uma sabedoria antiga, calejada, e por isso tranquila e indulgente a um tempo. Estava sentado numa cadeira de travessas, gingona como as outras três que, desalinhadas ao longo da parede, exigiam dos fregueses cautelas no sentar e no estar. Valia que eles, conhecedores, sabiam lidar e se afeiçoavam com perfeição – com comodidade – ao mobiliário.
O mestre Duarte ouvia com aquele sorriso que só dele o elogio suspeito do Palhinhas, e olhava do fundo dos olhos claros que também sorriam, não para o Palhinhas – assim como quem diz: fala praí que eu já te conheço… –, mas para mim e para o outro cliente que também estava sentado no banco corrido, outrora azul, em que aguardávamos vez separados por uma Bola enrodilhada, gasta por dedos e olhos, e que datava de quinze dias atrás.
Sempre com ar de quem conhece de ginjeira as entradas safadas do barbeiro, o mestre Duarte falou, calma e cavamente:
─ Este Palhinhas… sabe-a toda! ─ e piscou-me um olhinho irónico.
─ Não teve foi condições – prosseguia o Palhinhas, viperino, entre duas tesouradas. – Alguma vez naquele tempo havia lá as condições que há hoje…
─ Nem pensar, tampouco… ─ assentiu com voz arrastada e cúmplice o homenzinho que estava ao meu lado.
─ Qual o quê, homem de deus! ─ . O Palhinhas não desarmava. E com um travo de zombaria: ─ Basta dizer que cada pasteleira daquelas pesava um balúrdio… O mestre Duarte que diga: quanto é que pesava aquela bicicleta preta que vossemecê tinha, ó mestre Duarte?
O outro não se dignou responder logo: desconfiado, mas sem desgostar da conversa. A pergunta fora do barbeiro, mas foi para mim que ele falou, sempre com aquele fácies de sabedoria ancestral e amena bonomia:
─ A primeira bicicleta que eu tive pesava mais de quarenta quilos ─ sentenciou de um fôlego. ─ Ainda lá está dependurada no alpendre ─ e apontou o indicador esquerdo em direcção incerta, mas decerto que visava a casa dele, que ficava lá para cima, para as bandas que o dedo vagamente indicava.
─ Aí está, aí está! ─ triunfou o Palhinhas. (Na cadeira giratória, santa paciência a do rapazote amerruado e sufocado até às orelhas na grande toalha branca, com a trunfa bizarramente revolvida pelas mãos bruscas do Palhinhas.) ─ Agora compare lá você com essas máquinas que eles têm hoje! Isso pra já não falar do dopingue, as pastilhas que eles tomam…
─ As nossas pastilhas eram de gaspacho ─ proferiu lentamente, escarninho, martelando as palavras como era seu timbre, o mestre Duarte.
Estava curvado para diante: a espinha arqueada, os cotovelos pousados nas coxas, as mãos enlaçadas à frente do corpo; tudo nele era sereno e desapressado; o sorriso, dos cantos da boca aos bicos dos olhos, nunca o desarmava; de vez em quando deixava correr as mãos pelos cabelos ralos e escorridos do escalpe, que precisavam das tesouradas do Palhinhas.
─ Vossemecê lembra-se de quando fez aquela aposta com o Calóias, mestre Duarte? ─ . O Palhinhas voltava à carga.
─ Ora se m’alembro, ora se m’alembro… ─ articulou o outro passado um minuto, continuando a não fitar o interlocutor e alargando ainda mais o sorriso imperturbável. ─ Ora se m’alembro! Foi ontem!
─ Foi ontem! ─ riu pausadamente o homenzinho que estava ao meu lado e escutava atento. ─ Ah foi ontem, hein!? ─ Tornou a rir: ─ Foi há mais de vinte anos!...
─ Foi em 1955 ─ precisou o mestre Duarte. ─ No mês de Maio de 1955.
─ Foi, sim senhor. Lembro-me eu ─ confirmou com autoridade o Palhinhas, dando mais uma investida na guedelha do exasperado rapazote, a quem a conversa não interessava e só se queria libertar da tortura. ─ Lembro-me eu como se fosse hoje…
─ Ah, você lembra-se! ─. E pela primeira vez o mestre Duarte dirigia-se-lhe directamente, mas sempre sem o olhar. ─ Então e eu não m’alembro, não? Você lembra-se e eu não… ─ e fez com o queixo um sinal de desdém para o Palhinhas, que estava agora de costas e depenava com fúria a cabeça do gaiato como se quisesse recuperar o tempo perdido. E apontando para mim: ─ Ele alembra-se, e eu não m’alembro…
─ Mas como é que isso foi? ─ quis eu saber. ─ Nunca dei notícia de que o Calóias também tenha sido corredor…
─ Quis ser, quis ser ─ apressou-se a esclarecer o Palhinhas. ─ Deu-se foi mal aqui com o mestre Duarte.
─ Mas era bom, o Calóias! ─ insisti.
─ Era bom, era ─ volveu o mestre Duarte. ─ Era bom prás abóboras. O prémio das abóboras ganhava ele sempre ─ acrescentou, cavando mais o sorriso matreiro.
─ Das abóboras!? ─ inquiri, ignorante da metáfora. Mas foi o homenzinho de tez escura que estava sentado ao meu lado quem explicou, perante a tácita aprovação dos outros dois:
─ Você não vê que naquele tempo havia abóboras com fartura, ninguém as queria, era a comida dos porcos…
─ Ah! ─ emiti eu, a indicar que percebera. E afinando na ironia: ─ Então já vi que o Calóias era um Alves Barbosa…
─ Olhe, amigo da minh’alma ─ começou a contar o mestre Duarte ─, com o Calóias apostei eu em como de Vila Real a Cacela lhe dava meio quilómetro de avanço. Eu na minha preta que pesava três arrobas e ele numa novazinha que tinha mandado vir de Lisboa…
─ De corredor, era de corredor ─ cortou o Palhinhas. ─ Foi a primeirinha que apareceu por aqui.
─ E apanhou-o, mestre Duarte, apanhou-o? ─ . Eu quis conhecer depressa o epílogo.
O mestre Duarte encarou-me do fundo mais fundo dos olhos aguados, olhos que irradiavam um fulgor de malícia, e puxou uma fumaça da beata que segurava entre dois dedos muito amarelos de nicotina:
─ Se o apanhei?! Você anda pergunta se o apanhei?! Já eu estava a beber o segundo copo de quarto na venda do Matias quando chegou ele…
O Palhinhas imobilizou a tesoura no ar e torceu-se de gozo:
─ Parecia um cavalo cansado em cima da bicicleta!
O homenzinho de tez escura riu também, rimos todos. O mestre Duarte é que, se ria, o fazia em silêncio, sem alarde, vincando só mais as rugas da máscara e acendendo o brilho das pupilas. Animado, prosseguiu:
─ Doutra vez ganhei o circuito que a malta fez aqui d’em roda. Éramos mais de quinze, até vieram uns da Luz de Tavira. Eu fui o primeiro, mas a polícia é que ganhou o prémio. Duzentos e tal mil réis, nesse tempo era dinheiro… Duzentos e oitenta mil réis! ─ detalhou, após uma pausa para apurar a memória.
─ Pois corria um grande ali do Pocinho, que depois morreu no Ultramar ─ ajuntou o Palhinhas, que era um arquivo. ─ E o Zé André, que ainda chegou a ir à Volta mas nunca passou da segunda etapa.
─ E como é que havia de passar, Palhinhas, e como é que havia de passar!? Pois se o homem o que comia todo o ano era sopas de pão, como é que havia de ter força para aguentar a Volta? Aguentava-se aqui nestas carreiras, mas isso da Volta é um caso muito sério.
─ Então e os outros, Duarte? Então e os outros? Se calhar comiam bifes, não? ─ teimou o Palhinhas, provocador.
─ Pois comeriam, comeriam ─ redarguiu o mestre Duarte com a inabalável segurança da sua voz pausada e sentenciosa.
─ Isso quem não nasceu pró ciclismo nunca vale nada, ó! ─. O Palhinhas não aceitava ser contrariado. ─ É como o Calóias, fica prás abóboras…
─ O Calóias é outro caso… O Calóias é outro caso!
─ É agora cá outro caso! Não nasceram práquilo e pronto! Não têm arcaboiço…
Neste ponto entendi interromper a controvérsia. Voltei atrás:
─ Mas como é que a polícia lhe ficou com o prémio, mestre Duarte?
O homem fitou-me imperturbável.
─ Como é que ficou? Ficou bem. Inteiraram-se, e estavam à nossa espera. A malta quis fazer um risco de cal no chão a fazer de meta, pró sprinte ─ e o mestre Duarte simulou com a mão em cutelo um traço horizontal no lajedo tosco da barbearia ─, eles passaram, viram, e ficaram à espera. Ainda eu não me tinha desamontado e já um passarão daqueles estava a escrever o cheque… Que ainda perdi dinheiro ─ aqui o mestre Duarte aprofundou o sorriso enigmático ─, a multa foram mais de trezentos mil réis.
Gargalhámos todos – eu, o Palhinhas e o homenzinho escuro – sonoramente. Só o rapazote permaneceu carrancudo na cadeira da tortura, estorcegado no pescoço pela toalha branca maculada de tufos espessos da grenha negra a que o fígaro-algoz dava tratos de polé. O mestre Duarte, esse, não se ria: sorria apenas, mas sorria sempre, despejando sageza e matreirice dos olhinhos baços, gastos, e não obstante fulgurantes.
─ Eu é que ganhei, mas eles é que ficaram com o prémio ─ repetiu. ─ E como eu trazia quase um quarto de hora de avanço sobre o pelotão, os outros não perderam nada porque foram avisados pela malta e não cortaram a meta. Desopilaram, cada um prás suas casas…
─ Ah, ah! ─ casquinaram o Palhinhas e o outro.
Indiferente às risadas, sem afectar perturbação, o ciclista prosseguiu:
─ Só eu é que cheguei, mas roubaram-me a vitória… Roubaram-me a vitória na Volta a Portugal.
Mirei-o de soslaio, incrédulo. Embora estivesse de viés, ele apercebeu-se da minha estupefacção. Virando-se para mim, enunciou:
─ Pois aquele circuito era a nossa Volta a Portugal, meu amigo. Ali, no Verão, quando os dias são grandes, depois do trabalho, fazíamos a gente a nossa Volta a Portugal. E ainda era uma boa mancheia de malta! Tudo malta rija, de gana. O mal é que comíamos todos gaspacho ao almoço e sopas de pão ao jantar…
A hilaridade parecia esgotada. O homenzinho escuro chupava concentradamente o seu cigarrito. O Palhinhas caprichava agora, aparando atrás das orelhas de abano os cabelos desbastados do rapazote. Eu não achei que dizer. Sólido e tranquilo como dantes, o mestre Duarte cismava. Transcorrido um longo lapso de silêncio, tornou a falar:
─ Mas olhe que eu era tão bom quanto o Zé Maria Nicolau ou o Alves Barbosa. Ganhei uma Volta a Portugal, eles é que ma roubaram ─. Correu, num gesto muito lento, a mão pelos cabelos. ─ Olha, Palhinhas, faz-se tarde, ainda estão estes dois amigos à frente, logo passo por aqui amanhã.
Ergue-se com vagar da cadeira oscilante, meio dobrado pelos rins, e dirigiu-se para a porta. Estacou no umbral, obscurecendo mais a saleta acanhada e já mergulhada na penumbra do fim do dia. O Palhinhas dava os últimos retoques artísticos na cabeça do gaiato, que não via a hora de se libertar do suplício.
Sem visar ninguém em particular, o mestre Duarte ainda proferiu, já com um pé na rua:
─ E olhe que sempre tem sido assim. Ainda hoje apostámos na obra quem levantava primeiro uma parede. Eu fui o primeiro, mas o meu patrão é que ficou com o prémio.
O sorriso dele enchia a oficina. Nem eu nem o Palhinhas nem o homenzinho escuro encontrámos que retrucar.
─ Muito boas tardes!
E o ás do pedal montou na sua pasteleira ferrugenta – a mesma com que, vinte anos atrás, ganhara a Volta a Portugal que lhe foi roubada – e abalou. Como morava na Corte de António Martins, meia dúzia de quilómetros sempre a subir, ainda tinha um bom estirão que andar naquela etapa.
(1984)
escrito por A. Rosa Mendes
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