Para não esquecer...

APENAS AS LIBERDADES...

Leio no blogue Sine Die uma nótula titulada “Multiculturalismo” e assinada por Eduardo Maia Costa. Nela se verbera o que o autor designa de intolerância contra o multiculturalismo das sociedades ocidentais. “Os nossos jornais”, escreve, “andam cheios de críticas azedas” a esse multiculturalismo e apregoam uma “intolerância pura e simples” para com as minorias, em nome de uma pretensa, e de ressaibos racistas, “superioridade da civilização ocidental”. Para semelhantes “pregadores” – sempre segundo Maia Costa – impor-se-ia exigir às minorias identificadas como “inimigas” o respeito pelos “nossos valores”, os quais, sendo “universais, são bons para toda a gente, também para eles, portanto”. E de seguida, impugna: “Arrogância e hipocrisia conjugam-se nesta alegação. Os ‘valores’ por eles defendidos como universais são apenas os direitos civis, as liberdades cívicas, mas já não os direitos políticos, e de maneira nenhuma os direitos sociais e económicos. São os valores do mercado. São esses os valores do Ocidente”.

Concedamos que assim seja para esses tais “pregadores”. Mas… − apenas?! Apenas, Senhor Procurador? Sim, é que o Dr. Eduardo Maia Costa é um alto magistrado do nosso Estado de Direito, procurador-geral adjunto. Daí que cause estupefacção o advérbio redutor: apenas? Acha então de somenos a defesa generalizada dos direitos civis, das liberdades cívicas? Ignora o digníssimo procurador que a liberdade é a conditio sine qua non para tudo o mais? Que sem liberdade – sem os direitos civis e as liberdades cívicas, apanágios da dignidade humana – os restantes direitos, políticos, sociais ou económicos, não passam de mera ficção? Que a experiência histórica já sobejamente demonstrou que as ditaduras – nas quais, por definição, não existem liberdades cívicas – sufocaram outrossim todos os demais direitos?

Precisamente, antes que no nível abstracto e etéreo dos “valores”, é no terreno bem concreto da experiência histórica que cumpre situar a questão da pretensa “superioridade de civilização ocidental”. Para os adeptos do relativismo cultural – a corrente da moda na nossa conspícua intelligentsia, e na qual cabe inequivocamente incluir o Dr. Maia Costa –, não é possível alcançar verdades universais, pelo que, em última análise, todas as culturas se equivalem, nenhuma delas podendo reivindicar qualquer superioridade. E para os “pregadores” – que, aliás, o mesmo Dr. Maia Costa justamente estigmatiza – que professam o dogmatismo cultural, dado que existem verdades universais e irrefragáveis, é lícito aos seus detentores impô-las às restantes culturas, implicitamente inferiores. Ambas estas posições irredutíveis têm atrás de si um ponderoso lastro.

Ora tamanha antinomia – relativismo versus dogmatismo – resulta estéril e induz à confusão.

Existe, todavia, outra possível perspectiva: a da razão histórica. Assumindo e postulando embora a necessidade de reconhecer a diversidade cultural – e a correspondente recusa em impor aos “outros” os padrões que são “nossos” –, nem por isso abdica de procurar no terreno do concreto e da temporalidade – e o mesmo é dizer: na experiência histórica –, através do exercício da razão, a resposta para os problemas humanos. E aqui revertemos ao ponto das liberdades (apenas das liberdades, como diria o Dr. Maia Costa): foram estas que, nas sociedades europeias e ocidentais, francamente favoreceram o escrutínio crítico das normas, das crenças, dos valores, dos sistemas. A partir da matriz greco-clássica do “logos”, a história da cultura europeia e ocidental tem sido, não uma fortaleza cerrada, mas um contínuo e incessante questionar os seus próprios fundamentos: sempre duvidando de si própria, sempre reinventando-se a si própria, sempre no afã de se justificar a si própria perante o “tribunal da vida”.

Donde que a superioridade (tiro as comas, não há que temer a palavra) que cumpre atribuir à cultura europeia e ocidental não dependa dos seus sólidos fundamentos nem dos seus dogmas brandidos como verdades universais; ela, a sobredita superioridade, depende, sim, e muito modesta e comezinhamente, dos seus contingentes porém benéficos efeitos: desde logo, e em primeira linha, as liberdades cívicas (apenas as liberdades cívicas…), a tão duras penas arrancadas e só tão recentemente incorporadas no nosso património histórico-jurídico; depois, como sequelas, a abolição da escravatura, a emancipação da mulher, a eliminação das discriminações (o princípio da igualdade), a laicidade e a separação da Igreja e do Estado com o reconhecimento da autonomia do civil e político face ao religioso… − enfim, um longo et coetera de conquistas (sublinhe-se a traço grosso) históricas.

Desta perspectiva histórica – que é o único modo de contemplar a realidade a partir de uma concreta circunstância e não abstractamente – a nossa civilização europeia e ocidental, sem querer impor universalmente os seus “valores”, tem o direito inauferível de defender as suas conquistas históricas. Nem que seja, apenas, as liberdades cívicas.

escrito por António Rosa Mendes

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