Para não esquecer...

AFINAL O QUE IMPORTA É NÃO TER MEDO

Afinal o que importa
não é haver gente com fome
Porque assim como assim,
Ainda há gente que come
Mário Cesariny (1923-2006)
Acaba de ser publicado um estudo do Instituto Mundial para o Desenvolvimento Económico,
da ONU,
que revela o fosso cada vez maior entre ricos e pobres, com dois por cento da população mundial a possuir mais riqueza que o resto dos habitantes do planeta, isto é, num grupo de dez pessoas só uma delas tem 99 euros, enquanto as nove restantes, todas juntas, apenas têm 1 euro. Fica, assim, provado que, ao contrário do que alguns defensores do neoliberalismo insistiam em dizer, esta globalização não atenua as desigualdades, pelo contrário, acentua-as e provoca cada vez mais miséria.

Quase em simultâneo, foi revelado o estudo,
“Viver na Europa”,
sobre os salários e condições de vida, realizado pelo Departamento Federal Alemão de Estatística, que coloca Portugal entre os países europeus com maior risco de pobreza
(a par da Irlanda e da Eslováquia),
com 1% da população a viver sob aquela ameaça, abaixo dos 458 euros, ou seja, 60% do salário médio nacional
(na Alemanha, o salário médio é de 856 euros).
Já agora, perdoem os leitores este chorrilho de números, será bom não esquecermos que o valor médio das pensões é de 278 euros
(os 430 mil pensionistas com pensão social e do regime agrícola recebem, respectivamente, 200 e 206 euros),
abaixo do limiar de pobreza, fixado pelo governo nos 300 euros.

O Governo de Sócrates chegou a acordo na concertação social para que o salário mínimo tivesse um aumento de 4,4%, o que dá 403 euros, tendo ficado assente uma valorização gradual daquele valor de modo a atingir os 500 euros em 2011. Segundo as contas da agência Lusa, estes 80 contos dão para comprar menos 18,2% do que o salário mínimo de 1974, ano em que foi instituído. Curiosamente, ou talvez não, enquanto decorriam as negociações, surgiu na comunicação social o debate sobre a “flexigurança”, introduzido pelo ministro do Trabalho. Este modelo, inspirado na experiência dinamarquesa, consiste, basicamente, em flexibilizar as relações laborais
(facilitar os despedimentos)
em troca de uma maior protecção social
(maior subsídio de desemprego).
Acontece que especialistas alemães e franceses realizaram estudos
(ver suplemento de Economia do DN de 29.11.06)
que concluíram que o modelo dinamarquês, dadas as “particularidades do sistema educativo e o dinamismo dos seus empresários”, não pode ser implementado em países como a França ou Portugal. O ministro Vieira da Silva esquece que em Portugal a precariedade laboral é praticada até pelo Estado, que recorre, de forma escandalosa, à “contratação” por “recibos verdes”.

E não é só o poder de compra dos portugueses que “vai caindo, caindo, caindo sempre, na razão directa do quadrado”… dos lucros dos bancos e do aumento das grandes fortunas: também caem prédios no centro de Coimbra, três dias depois de técnicos da Câmara terem afastado o risco de ruína
(em Viseu, pelos vistos, os técnicos camarários não correm o risco de ficarem soterrados debaixo dos prédios que caem…);
até corre risco de cair a Ponte Maria Pia, a obra-prima de Seyrig, segundo alertou José Manuel Lopes Cordeiro, especialista em história industrial, devido à falta de conservação, desde que foi desactivada, há 15 anos.

Caiu também Manuel Alegre na minha consideração. Depois de o ouvir toda uma campanha eleitoral para a presidência da República a sublinhar os seus princípios republicanos, vem agora admitir a possibilidade de vir a defender um referendo à monarquia em Portugal. Que o poeta apresente os livros sobre o seu “amigo Dom Duarte de Bragança” é lá com ele. Agora, admitir que, como disse o autor da biografia, aquele possa vir a ser “o rosto da identidade portuguesa”, francamente! Viram bem na televisão o menino Afonsinho,
perdão, D. Afonso de Santa Maria de Bragança,
filho primogénito do senhor Pio, na cerimónia iniciática às funções protocolares, durante a qual recebeu uma luva de esgrima oferecida pelo jovens “mosqueteiros” de Lisboa, sempre de queixo empinado, pose hierática, como um caniche amestrado? Pobre criança!

Ainda não caiu o Império, mas já caiu o invasor do Iraque. Após 2.900 soldados norte-americanos mortos, 120 vítimas civis por dia, 400 mil milhões de dólares derretidos em armamento, incluindo armas de destruição maciça, como o fósforo branco utilizado no massacre de Falluja, finalmente, Bush admite que perdeu a guerra e até está pronto a negociar com o “eixo do mal”: o Irão e a Síria.
Afinal o que importa
é não ter medo e chamar o gerente
E dizer muito alto, ao pé de muita gente:
“Gerente, este leite está azedo!”
Caiu Cesariny, o homem. Ficou de pé o poeta e o pintor.

Outro grande homem e intelectual ergue-se de novo, em Tondela. Dia 7, comemorou-se o centenário do nascimento de Flausino Torres, com uma exposição sobre a sua vida e obra e o lançamento de um livro com textos inéditos, da editora Afrontamento. O autor da “História Contemporânea do Povo Português” não foi só um brilhante historiador, como também foi um antifascista consequente, o que lhe valeu o afastamento do ensino, a prisão e o exílio.
Esta exposição está na ACERT até 15 de Janeiro, mas não se esqueça que esta semana ainda está a decorrer o FINTA, o Festival de Teatro da ACERT.

escrito por Carlos Vieira

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