Para não esquecer...

POIS!... [estórias exemplares] -14-

envelhecer em Portugal

Tímida e silenciosa, quase pedindo desculpa por estar ali, abeirou-se da turista distraída nas suas leituras de férias. E sussurrou um pedido ante o olhar inquisitivo da interlocutora, que não ouviu, porém adivinhou, a palavra”esmolinha”. Não foi bem um pedido. Era mais uma interrogação súplice, envergonhada.

Perante ela prefigurou-se uma velhinha, curvada e pequenina, de rosto magro, queixo ossudo e lábios finos, numa boca que quase desaparecia sob o nariz aquilino. Não desviou o olhar, o qual revelava ainda uma certa vivacidade, mesmo candura, quando a outra a sondou a tentar perceber o porquê daquele pedido: embora pobremente vestida, não estava andrajosa.
Indaguei do paradeiro da família. Fez um gesto largo e comentou: “Ah! Esses? Há muito que se esqueceram de mim.”

Meteu-lhe uma moeda na mão e voltou a inclinar-se sobre a revista. A velhinha agradeceu e foi-se embora, tão silenciosa e leve como viera. Uma ideia cínica passou fugazmente e ficou suspensa no ar, perturbando-lhe a leitura: “Andará a pedir para alimentar um qualquer vício moderno dum neto hipotético?”

Mas a ideia breve transformou-se quase em simultâneo numa ideia fixa e a imaginação partiu para longe à procura da razão do esmolar de velhinha deslocada no tempo e no lugar, bem como no seu mister: -- Talvez uma filha única, ausente em terras estranhas, lhe tenha deixado em herança um neto órfão e tão inexperiente da vida quanto ela. Um neto a quem não pode, ou não soube, mostrar o caminho. Como já alguém disse, “ o caminho faz-se caminhando”. Mas o de alguns nem chega a ser caminho.

Ah, os velhos do meu país, tão frágeis e tão sozinhos!

Não quero voltar a sentar-me nesta mesa desta esplanada. Nesta Cidade Património da Humanidade!

escrito por Gabriela Correia [Évora, Agosto de 2005]

1 comentário(s). Ler/reagir:

Anónimo disse...

Podia acontecer em qualquer outra cidade, qualquer outro canto deste país que maltrata o passado - e, portanto, os velhos. O que significa que é um país sem futuro. Está a chegar ao fim, acredite.