Augusto Abelaira
[da introdução ao romance Humilhados e Ofendidos, de Dostoievski -- Lisboa : Estúdios Cor, 1962 -- traduzido por Maria Franco]:
Imaginemos que alguém nos diz:escrito por ai.valhamedeus
— Conta-me os Humilhados e Ofendidos. — Trata-se de alguém que teve medo das 400 páginas do livro, bem entendido. Porque isto de ler, numa época em que os grandes romances (A Cartuxa, Guerra e Paz, Os Irmãos Karamazov) já foram reduzidos aos cómodos (e também pedagógicos) quadradinhos, vai sendo prova de um espírito bastante bota-de-elástico.
Eis-nos, subitamente, apanhados numa ratoeira; não tão grande como se o pedido se referisse a Os Demónios, claro está; mesmo assim... Primeira dificuldade: com que espécie de pessoa estamos a conversar? Com a Costureirinha da Sé (quem convencionámos ter um espírito de costureira da Sé) ou com uma universitária (uma universitária que não esteja apenas a estudar para arranjar marido)? À Costureirinha da Sé talvez pudéssemos responder:
— Era uma vez duas raparigas a quem o príncipe Valkovski perseguiu, embora, de modos diversos: seduzindo uma, afastando a outra do seu filho, Aliocha, quando este se dispunha a casar com ela. Coincidência estranha: ambas foram vítimas da intransigência dos pais, que as amaldiçoaram, embora um deles acabe por se render ao verificar as terríveis consequências que o gesto do outro provocou. Etc. — A história é tão complicada que teríamos de continuar neste tom por muito tempo para que a nossa ouvinte formasse uma ideia aproximada dos numerosos incidentes que são o fundo sobre o qual se desenvolve o romance e se agitam as personagens.
Mas se contarmos os Humilhados e Ofendidos desta maneira, teremos a sensação de que traímos de uma forma radical o livro de Dostoievski. Portas que se abrem de repente (Dostoievski não sabe fechar as portas à chave) para dar entrada a personagens inesperadas, mas que chegam muito a propósito ou a despropósito, pressentimentos, golpes de teatro constantes, gente a correr (Dostoievski ou, pelo menos, os seus heróis, não aprenderam a andar a passo e sentimos que teriam adorado viver na época do avião a jacto)... Tudo isso terá alguma importância? Esta dúvida é tão razoável que a nossa maneira de falar à universitária seria outra:
— Não vale a pena contar a história — diríamos —, porque a história não tem importância... As personagens sim, e é preferível falarmos delas e deixar o resto: o príncipe Valkovski, um ser amoral que não se preocupa com os outros, para quem os outros são simples instrumentos ao serviço das suas ambições, um demónio cínico para quem o mundo termina na ponta das unhas. Aliocha, o filho, um ser fraco, incapaz de resistir à influência de quem está com ele, gravitando hoje em torno de Natacha, amanhã em torno de Katia, joguete nas mãos do pai. Nelly, a órfã que depois da morte da mãe adorada conhece o inferno em casa da Bubnova. Etc. — Teríamos pano para mangas.
Agora sentir-nos-emos à vontade. Falando apenas dos heróis e heroínas, das suas características, abstraindo quase completamente do entrecho, temos a impressão de que não traímos o romancista.
Mas repare-se: se alguém me pedir um resumo da Ana Karenine (e estou a cair no velho pecado de não saber falar de Dostoievski sem falar de Tolstoi), não sinto a mesma dificuldade, pouco me importa quem é a minha interlocutora. Seja em que circunstâncias for, contarei sempre a intriga, porque a intriga è essencial, fala por si mesma, empurra as personagens para a frente. Ao contrário dos Humilhados e Ofendidos, a Ana Karenine é um romance em que a anedota é importante, rica, válida, subsistiria por si mesma, ainda que as personagens que nela intervêm não estivessem genialmente desenhadas.
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