Para não esquecer...

estórias da carochinha * 4. A FIGURA (cont.)

[leia o capítulo anterior, se é necessário avivar a memória...]

--Ah! A história!

Eu sei de muitas estórias. A minha vida é uma história pegada.

Ignorei o chavão.

As palavras são como um biombo, escondem atrás verdades poucas vezes confessadas. Porventura inconfessáveis. Para que o mundo, sobretudo o nosso, não tombe. O mal não está nas palavras; o mal, se mal existe, está em quem as usa, as escolhe. É como com as armas: inofensivas nas mãos de alguns; mortíferas, de destruição maciça, nas de outros.

“O silêncio é de oiro”, “o calado é o melhor”, repetia-lhe a Avó, num aviso guardado no fundo da memória. Bem no fundo, com toda a certeza, visto ela privilegiar o diálogo, a clarificação das situações, até não restar nada do lodo do equívoco. Tão-só a superfície clara da verdade. Tão clara e límpida como os seus olhos, que alguém já classificara de claros, não na cor, e profundos. Madrigal inconsequente, como todos os madrigais soltos na emoção do momento; na clara ilusão da alma descuidada.

Desviou-os então de onde os pensamentos lhos haviam levado, fixando-o. À espera.

Ele captou a seriedade, o interesse quase impositivo, e algo no rosto dela lhe deu a certeza de que se não começasse a sua versão da estória, nunca mais iria ter a oportunidade de a contar.

De pé, a uma certa distância, de respeito profissional pelos clientes, bandeja descansando debaixo do braço, os olhos ora no horizonte da tarde quase perfeita, ora na minha mesa, principiou:

-- As pessoas cruzam-se todos os dias sem se verem; cada uma no seu rumo, na sua labuta ou ócio, os pensamentos sabe Deus onde, e não se imagina o que cada um carrega consigo. Ai, ai, este homem afinal é um filósofo! Veja, você! As pessoas olham sem ver. Viram a cabeça, sorriem ou riem-se sem pejo dessa que passou aí, há pouco. Pensam que é mais uma maluca, uma drogada! Mas não é bem assim. Eu é que sei o que se passou.

Suspendeu a narrativa, voltou o olhar triste e solidário para ela, que o recebeu sem desviar o seu, e suspirou. Não havia sinais de raiva na sua saudade ou lembranças; antes um lastro de melancolia e uma auréola de poesia.

E pareceu-lhe a ela que aquele suspiro continha toda a mágoa, todos os cadilhos de uma vida incompleta.

[continua]

escrito por Gabriela Correia, Faro

0 comentário(s). Ler/reagir: