[leia o capítulo anterior, se é necessário avivar a memória...]
Com expressão vazia olhou o mar, os barcos, o pombo que, sem cerimónias, entrou afoito, a fazer pela vida, esperando encontrar umas migalhas, marcando o território. O empregado foi buscar de imediato material de limpeza e, encolhendo os ombros, murmurou mais para si do que para os presentes: “é todos os dias isto!”.
O sol ia-se retirando, por entre vermelho e púrpura, mas os últimos raios ainda doiravam as mesas e cadeiras já vazias de conversas. A dona dos cães levantou-se, autoritária, e eles seguiram-na ensarilhando-se na trela, na afanosa conquista de um lugar mais perto dos afectos, junto às pernas dela.
Por falta de quórum o bulício foi-se aquietando e, mais livre, ele foi-se chegando e atirou, sem aviso:
-- Sabe, tenho reparado em si! Anda sempre com uns papelinhos, uns cadernitos, e escreve, escreve. Não é bem verdade, também leio, pensou ela pouco à vontade. E fico muitas vezes a olhar para lado nenhum. Se lhe perguntassem o que é que olhava tão fixamente, não saberia dizer. Querem lá ver que este homem é um observador! Lembrou-se, então, daquelas frases idiotas do tipo: ”sorria, está a ser filmado.” E dos conselhos dos optimistas que pululam nos mails: “Não te esqueças de sorrir, alguém pode estar apaixonado pelo teu sorriso”. Pois!
Mas já ele insistia na atenção dela:-- Quando era miúdo, gostava muito da escola. Ainda sei de cor versos que aprendi na altura… Quer ouvir? E tinha escolha? “Com que então caiu na asneira / de fazer na 5ª feira 26 anos/ que tolo! …” E recitou, sem enganos, até ao fim, os conhecidos versos de João de Deus, que uma senhora da alta burguesia de Coimbra lhe solicitava, sem êxito, para os anos da filha. Segundo parece, o interesse era outro; casar a filha que, naquele tempo, com aquela idade, corria sérios riscos de ficar solteirona. Encalhada, como se diz neste tempo, com aleivosa maldade. Encalhado estava também o poeta, no seu Curso de Direito que decorria há quase 10 anos! A sua “Guerra de Tróia”, como jocosamente ele lhe chamava. Por fim, cansado da insistência da dama, lá lhe saíram aqueles versos. Que isto de poesia, não é por encomenda. O que é que ela julgava?!...
-- Olhe, eu podia ter avançado mais nos estudos se os meus pais tivessem posses e não fôssemos tantos. Mas tive de começar a trabalhar… Não é como agora, os pais dão tudo aos filhos e depois queixam-se. Ele é telemóveis, computadores, play-não-sei-das-quantas, … Ora bem, temos aqui um observador; e um moralista. Mas, e a história?...
[continua]escrito por Gabriela Correia, Faro
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