[leia o capítulo anterior, se é necessário avivar a memória...]
– Pois… Como já lhe disse a história passou-se por alturas do Natal. Teria eu pr’aí uns sete, oito anos. Lembro-me como se fosse hoje!
Com ela acontecia o mesmo. Havia imagens, bocados de conversa, objectos, olhares de cumplicidade trocados entre os pais que estavam para além da sua capacidade de entendimento de criança, mas cujo significado intuía, pressentindo a borrasca. Lembrava-se com nitidez cristalina do Pai a calçar uma bota, apoiando o pé numa cadeira de palha; o sorriso dele, trocista. A voz da Mãe agastada, imperativa. Encorajada pelo tom zombeteiro e divertido do macho, a Mãe insistia. A indagar da verdade. Ela, no meio, vendo no seu coração de criança as nuvens sombrias a acastelarem-se no céu limpo da cena íntima e familiar: o Pai ali, em casa! Preenchendo a ausência. Ela, porém, sabia que o momento da sua felicidade ia desaparecer. Que a tempestade estava prestes a irromper. Com fúria, avassaladora, a fazer ruir o seu pequeno mundo. O seu castelo.
Por fim, ficou bem claro quem é que usava as calças lá em casa. Quem dominava. Por via do poder económico. Secundado pelas regras sociais.
Abalada que estava a paz do lar, a Mãe, orgulhosa e de feitio avesso à submissão, remetia-se ao mutismo, ao amuo que durava uma eternidade, na sua escala de criança. Espiava, inquieta, dias a fio a expressão no rosto dos meus pais, e a alegria que me inundava ao divisar neles ténues sinais de reconciliação era maior do que a alegria da oferta do brinquedo que namorara na montra. Muito mais doce do que todos os gelados do mundo.
– Desde aí, o meu pai nunca mais foi o mesmo, volveu ele. Acabaram-se os jogos, os risos. O meu pai deu em beber…
Ela comoveu-se. Afinal, outros tiveram de atravessar a infância como náufragos. Agarrados à bóia dos momentos fugazes em que a felicidade aparecia, qual arco-íris reconfortante.
– O pior era o sentimento de culpa. Os olhares de reprovação dos vizinhos. O ressentimento dos pais da criança. Aquilo afectou-nos a todos. Nem calcula…
– Mas o que é que aconteceu? indagou, um tudo-nada impaciente.
[continua]
escrito por Gabriela Correia, Faro
0 comentário(s). Ler/reagir:
Enviar um comentário