Para não esquecer...

ÁGORA [2] a realidade é real?

Zenão de Eleia
Zenão de Eleia

[um filósofo do século V a.C., natural de... Eleia, na Itália],
certamente em dias em que acordava muito criativo, propôs teorias como a de que o movimento é impossível. Conta-se que, quando Zenão estava a defender tal teoria, um espertalhão se pôs a andar diante dele, de um lado para o outro, como quem diz "Olha lá para mim e diz-me se não me estou a mover...".

O argumento mais famoso de Zenão é o de Aquiles e a tartaruga: numa corrida com a lenta tartaruga, o herói grego Aquiles dá-lhe uma vantagem... de 40 metros; quando Aquiles chegar ao ponto onde a tartaruga estava, já esta avançou; e, quando Aquiles chegar ao ponto onde está agora a tartaruga, já esta lá não está... e assim sucessivamente. De onde se conclui que jamais Aquiles alcançará a tartaruga.

Como acontece com todos os espertalhões, o espertalhão que se pôs a andar diante de Zenão não percebeu a tese do filósofo: nós vemos o movimento, é certo; mas basta pensar um bocadinho para perceber que o que vemos... não passa de uma ilusão.

Chegados a este ponto, é altura de formular explicitamente a pergunta que está implícita neste texto desde o início: o que é a realidade que nós percepcionamos? o que é observar ou percepcionar o mundo? A resposta comum, a do espertalhão de Zenão, parece simples: eu, aqui, vejo a parede à minha frente, ali, com os meus olhos, directamente... e o que está à minha frente é o que eu vejo. Onde poderá estar a dúvida?

Se alguém se atrever a duvidar de que a parede é realmente como eu a vejo e a pensar que se trata de uma fantasia minha, basta... experimentar chocar contra ela e levar com a dureza dela no corpo. E ganhar juízo, que é como quem diz, deixar-se de filosofias.

E, contudo e como se viu, há filósofos que se atrevem a tanto
[bem... o atrevimento não vai ao ponto de chocar com a parede e levar com a dureza dela no corpo. Fica-se por objecções à credulidade face ao mundo, antes apresentada. E já não é pouco...]
E talvez eles tenham as suas razões. Recordo apenas algumas...
  1. É sabido, mesmo por quem nunca tenha experimentado, que certos alucinogéneos mostram a realidade numa dimensão diferente da que é considerada habitual. Dizemos nós, os não alucinogenados, que essas não são as verdadeiras visões da realidade: será a outra, a habitual, a verdadeira? só por ser mais comum?

    O grande fundamento para as certezas do espertalhão da nossa estória são os sentidos: se se o movimento, como é possível negá-lo? De facto, parece que confiamos nos sentidos
    [e em particular na visão]
    e é por confiarmos tanto neles que aceitamos cegamente a nossa percepção do mundo. Mas basta um pouco de calma para começarmos a desconfiar deles
    [e até para verificarmos que não confiamos tanto neles como parece].
    Na verdade, habitualmente, "vemos" a realidade (?) de um modo diferente daquele que os sentidos nos mostram. Faça estes exercícios: acha que o Sol é tão pequenino como os seus olhos lho mostram? Pense no que os seus olhos vêem (?) nas figuras abaixo apresentadas e confronte-o com o que realmente diz que vê (?). Na da esquerda vê um vaso ou 2 pessoas frente-a-frente? E na da direita, uma personagem, certamente muito lida, ou um conjunto de livros?

    [Querendo divertir-se com outras "ilusões ópticas", aqui encontra um ror delas].
    E, já agora, veja de outro modo como funciona a nossa percepção: sem o pôr a rodar, olhe a figura inicial do vídeo seguinte; depois faça-o a rodar e tire as suas conclusões...


  2. Para efeitos do tema deste texto, a História do pensamento humano também nos permite tirar algumas conclusões. Ao longo dos séculos, temos andado a defender teorias que vigoraram durante séculos como verdades irrefutáveis que mais tarde se demonstrou serem simples erros. Para referirmos apenas algumas muito conhecidas: durante milhares de anos admitiu-se como evidentíssimo que o Sol girava em torno da Terra ou que a Terra era plana.

    E agora façamos outro exercício, em relação a nós: não será necessário avançar muitos séculos para imaginarmos que, certamente, de nós (de algumas das nossas evidentíssimas teorias actuais) hão-de dizer os nossos vindouros "coitados! como andavam enganadinhos!"...

  3. O que pretendo eu com este palavreado todo? Isto: mostrar que percepcionamos o mundo não ao jeito da película de uma máquina fotográfica, que regista passivamente, mas que a nossa percepção é interpretação. E isto: apresentar razões a favor da ideia de que muitas vezes acreditamos saber aquilo que de facto não sabemos.

    Em texto anterior, distingui crença de conhecimento. Dir-me-á o leitor: "mas naqueles casos é óbvio que estamos enganados". E eu pergunto: e quem nos garante que nós não estejamos (também)? E o quê nos garante que os nossos sentidos, que às vezes nos enganam, não nos enganam sempre?
    [há um sábio lembrete popular que vem a propósito: coitado do mentiroso! / Mente uma vez, mente sempre. / Mesmo que diga verdade, /Toda a gente diz que mente].
    A ciência demonstra, hoje, que as cores captadas pelos nossos olhos não estão no mundo real, mas nos comprimentos de onda recebidos pela retina e interpretados pelo cérebro. Aliás, para nos apercebermos do nosso papel no meio disto tudo, basta pensarmos que a mesma cor é vista de modo diferente consoante a iluminação em causa: um dia destes, num pronto-a-vestir, uma senhora pediu autorização para ir à rua com umas calças que queria comprar, para ver a "cor real" das calças, porque a luz artificial da loja "deturpava" essa cor -- e eu perguntei-me por que razão a cor vista à luz do sol haverá-de ser mais real do que a cor vista à luz artificial
    [bem... compreende-se a preocupação da senhora: presumivelmente, as calças seriam mais vezes vistas à luz do sol, na rua. Mas isso é outra estória].
  4. Termino com uma pergunta de Simon Blackburn
    [Pense: uma introdução à filosofia. Lisboa: Gradiva, 2001, p. 23]:
    "Como poderemos saber que o mundo tal como pensamos que seja é o mundo tal como realmente é?" Como poderemos saber que não há "diferença entre as coisas tal como se nos apresentam e as coisas tal como são?"
escrito por ai.valhamedeus

2 comentário(s). Ler/reagir:

Anónimo disse...

"coitado do mentiroso! / Mente uma vez, mente sempre. / Mesmo que diga verdade, /Toda a gente diz que mente"

Não sei por quê este anexim trouxe-me à memória a figura do deles primeiro ministro.

Deve ser uma alucinação pois o meu vizinho está a dizer-me que ele nunca falou verdade

freespirit disse...

Talvez não possamos ver as coisas tal qual elas são.
Mas o facto de as poder ver de diferentes formas não me deixa tão desiludido assim :)
Ultravioleta, infravermelho ou visível... com os instrumentos que há hoje, é só escolher!