José Pacheco Pereira, no Público de sábado passado, publicou um texto que merece ser guardado: tendo como referência filosófica o mito da caverna de Platão, reflecte sobre o momento político actual, sobre um eventual pacto partidário... e, afinal, sobre a democracia -- e a falta dela e alguns actores dela-democracia e dela-falta.
Estamos na caverna, obviamente, de costas para o conhecimento e virados para a propaganda. Só faltava mais esta do "pacto". Num destes dias de ficção comunicacional, vivemos sob o espectro do "pacto". Vitalino Canas terá dito ao Jornal de Negócios que "hoje em dia, tendo em conta as dificuldades, seria obviamente importante haver o maior consenso possível", a partir de uma putativa interpretação de palavras de Manuela Ferreira Leite. Seja como for, a comunicação social tomou as palavras como sendo a sério e transformou-as num caso que durou um dia. Durou um dia, mas durou. E num dia que tem significado para se perceber como funciona a vida política hoje no grande palco mediático, onde personagens não muito diferentes das do Second Life passeiam num jogo de luz e escuridão que pouco tem a ver com a cidade que está lá em baixo. Onde há cada vez mais sombra, tanta mais sombra quanto já quase nada mais vemos do que aquilo que os holofotes dos media querem que vejamos, por dolo ou por show business, vai dar quase ao mesmo. É uma coisa de caverna, de gente que tem umas grilhetas que os fazem ver apenas fantasmas e não o Sol, que se passeia "twitando" e "blogando" imbecilidades uns aos outros, distraídos pela intensidade do espectáculo, e condenados a viver na "opinião comum", a doxa dos gregos. Platão, claro. Platão, what else?, diria Clooney à volta da máquina dos cafés.escrito por ai.valhamedeus
Um dos órgãos de comunicação social que se centraram no "pacto" foi a TSF, que lhe dedicou um Fórum. Uma avalanche de palavras para nada, mas é assim que nós estamos cada vez mais, niilistas. O nada tem sempre boa imprensa. Na abertura e durante o tempo que quis, o ministro Santos Silva (que tem sempre o tempo que quer e quando quer nos órgãos de comunicação social, a começar por aqueles que tutela) que é o mais agressivo ministro político deste Governo, depois do primeiro-ministro, ele que conduz quase sempre as operações políticas de ataque à oposição, dedicou-se inteiramente à sua função. Para lhe responder, do outro lado, com uma pequena faca, diante da metralhadora, ninguém.
Santos Silva não se colocou fora da possibilidade retórica de um "pacto", mas explicou o que ele significava: apoio e subordinação do PSD às políticas do Governo face à crise. Utilizou uma linguagem hábil, na qual o Governo deixava de ser o sujeito da política, antes o sendo as "empresas, as famílias e as pessoas". O PSD deveria "apoiar as empresas, as famílias e as pessoas" a combaterem a crise. Como? Apoiando as políticas que estão no terreno para ajudar "as empresas, as famílias e as pessoas", ou seja, as políticas do Governo, assim transformadas num intangível facto que só os homens maus e pérfidos da "política" e dos "partidos" podiam pôr em causa.
Como é que alguém pode contestar tal bondade de "apoiar as empresas, as famílias e as pessoas"? Ninguém, a não ser os que querem o mal "às empresas, às famílias e às pessoas", ou seja, ao Governo que tão bem cuida dos seus interesses nestes dire straits. Tudo funciona em círculo vicioso e fora desse círculo só pode haver erro e maldade.
As políticas do Governo não têm contestação, como também não se pode questionar se elas serão certas ou erradas - impossível, este Governo nunca erra -, se chegam tarde de mais - chegam sempre quando têm que chegar -, se são suficientes - são sempre suficientes, mesmo quando se têm que somar mais milhões a uma política que há quinze dias era "suficiente" -, e se tem rumo e direcção - têm sempre, mesmo quando são guiadas pelas estrelas.
A linguagem é viciosa - Santos Silva sabe muito bem do valor das palavras, como afirmou numa nova entrevista à RTP no dia seguinte ao Fórum - e é fantasmática. Orwell explicou bem este processo: quem manda nas palavras manda em nós e o ministro Santos Silva manda muito bem nas palavras e, fora do seu círculo vicioso, não há realidade. Estamos na caverna, obviamente, de costas para o conhecimento e virados para a propaganda. Sofisticada, hábil, mas semelhante à retórica dos sofistas que Platão queria combater, sem ofensa para os sofistas. Uma vez mergulhados na escuridão, tomando as sombras pelas coisas, não sabemos sequer como escapar. Como é que podemos saber, se nunca as vimos?
O universo mediático-político em que vivemos, usando o vocabulário comum, com a distanciação do real, a obsessão pela imagem e pela encenação, empobrecido e devastado pela crescente ignorância dos seus actores, políticos e jornalistas, ofuscado pela espectacularidade, tornou-se um poderoso ecrã que se interpõe entre a nós e a realidade. Às vezes duvido se haverá essa coisa subtil que é o real, mas recordo sempre, quando me lembro - ah! estas reminiscências! - de que há pobreza, desemprego, vidas difíceis, insegurança, doença e morte. Lá fora.
Voltemos ao "pacto", a nossa distracção desta semana. O problema com estas histórias de "pactos" é que basta falar deles e fica muita gente a salivar pavlovianamente. Uma das doenças da nossa vida pública, tardio e serôdio resto do nosso pós-salazarismo, é a mania do "consenso", dito em linguagem vulgar, "não percebo por que é que os partidos (ou os políticos) não se entendem e trabalham todos juntos para o bem do país". Como estamos numa enorme crise e ainda a vamos ter maior do que enorme, esta vontade de que nos "entendamos" todos é uma força poderosa. Fala-se em "pacto" e quem o propõe fica no andar de cima e quem o recusa, na cave.
O ministro Santos Silva sabe muito bem disto. Sabe muito bem que por muito que as elites namorem a ideia da "ruptura" e do "confronto" - na verdade, mais namorem do que pratiquem - do que toda gente gosta é que nos entendamos. E sabe muito bem que as democracias não foram feitas para que nos "entendamos", mas para que nos confrontemos pelas regras do debate público e que decidamos pelas regras da democracia e da lei. Noutro contexto, para justificar o seu "malhar na direita", ele disse-o e bem. Mas, aqui, ficou doce que nem um passarinho. Querem vir connosco na arca bíblica de Noé, a única que nos dá a salvação e nós vos abrimos os braços; querem ficar de fora, chuva e vento e raios vos esperam. Ou estão condenados a Sodoma e Gomorra, embora falar destas cidades de vícios precisos não seja hoje muito politicamente correcto.
E andamos assim, de dia para dia, na ficção e no nada, sem um debate público que sirva a vida pública, mandados pelo poder, cujas palavras "mandam" mais porque vêm do local certo, com uma democracia doente, imersa num espectáculo pobre com maus actores e pior enredo.
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