Para não esquecer...

ÁGORA [4] hume e a causalidade

A discussão de Hume sobre a causalidade é um dos contributos mais substanciais que o empirismo deu à filosofia. O que é que podemos observar acerca dos poderes e estruturas causais do mundo? Habitualmente falamos de forças, acções ou influências; de objectos que afectam outros objectos; de um evento que produz outro
(podes imaginar um mundo que não incluísse a causalidade? Procura fazê-lo agora mesmo. Foi a leitura do enunciado anterior o que causou que fizesses essa tentativa de imaginar que não existe a causalidade?).
Mas, podemos conhecer empiricamente tais dimensões causais do mundo?

Depende do que for a causalidade. Muita gente diria que consiste numa forte conexão entre dois eventos, um dos quais torna necessário o outro. No entanto, alguma vez observaste este tipo de vínculo? Hume negou que alguma vez tivesse havido alguém capaz de o fazer. Defendia que estamos limitados a observar, no máximo, certas sequências associativas, em vez de quaisquer vínculos ou conexões adicionais.

Comprova por ti próprio a verdade desta última afirmação. Observa como se fricciona um fósforo e surge uma chama. Observa depois como se fricciona outro fósforo e surge outra chama. Podemos repetir esta sequência quanto quisermos; não hesitaremos em a classificar de causal. Mas a tese de Hume é que ninguém – e isso inclui aqueles de nós que formos cientistas – pode observar qualquer necessidade subjacente. A observação, por mais sofisticada que seja, só poderá revelar como a um evento se sucede outro. Não interessa quantos fósforos se friccionem nem quão cuidadosamente sejam observados: não se observará nada mais do que uma simples regularidade. No máximo, percepcionaremos uma sucessão periódica – a “conjunção constante”
(constant conjunction, como a denominou Hume)
– entre um fósforo friccionado e um fósforo aceso. Talvez uma investigação prolongada nos descubra alguma regularidade adicional que ajude a explicar a anterior. Mesmo assim, nunca observaremos conexão alguma que subjaza, como algo fundamentalmente distinto, a tais regularidades observáveis.

E a razão de que nunca possamos observar uma conexão semelhante é que tais eventos envolvidos na respectiva interacção causal são “realidades distintas”
(distinct existences, para usar outra das expressões predilectas de Hume).
Nem a fricção do fósforo nem a aparição da chama se implicam mutuamente, em sentido estrito. Primeiro ocorre uma coisa; depois – não interessa quão rapidamente – a outra, metafisicamente distinta da primeira. Ainda que possamos inferir que se estabelece entre elas um vínculo oculto, trata-se de uma inferência que vai para além de qualquer sustentação observacional que possa ser aduzida em seu favor; o único que podemos observar é um “antes” e um “depois”. Inferir que o vínculo adicional está de qualquer modo presente é aceder a uma instância à qual não fomos conduzidos pela observação enquanto tal. Portanto, qualquer afirmação a respeito de que um vínculo causal adicional subjaz àquilo que podemos observar, ou é um conhecimento não puramente observacional ou não é conhecimento em absoluto.
Para pensar:

Se fosses dono de uma empresa manufactureira e se descobrisse que existe uma forte correlação entre o produto fabricado pela tua companhia e uma doença perigosa, negar-te-ias a aceitar que se trata de um esquema causal, pelo menos até que se encontrasse algo mais que uma correlação forte? Mas como poderia ocorrer esta última correlação? Seria moralmente irresponsável da tua parte não considerar a correlação forte pelo menos como se fosse causal? Deverias abster-te voluntariamente de comercializar o teu produto, por razões morais, até se terem realizado estudos adicionais? Gozam as empresas do direito moral de comercializar os seus produtos indefinidamente?
[Stephen Hetherington. Filosofía: una breve introducción a la metafísica y a la epistemología. Madrid: Alianza Editorial, 2007, p. 266-269. Tradução, a partir do espanhol, de Ai meu Deus]

escrito por ai.valhamedeus [ilustração rapinada daqui].

2 comentário(s). Ler/reagir:

Anónimo disse...

destes "ostes" é que eu gosto.
Gente de ciência e cula é outra coisa.
Não é como aqueles pelintras que só escrevem lugares comuns.
Forçacamarada ou se preferires companheiro e amigo

Ai meu Deus disse...

Este texto (como outros já publicados e a publicar) tem destinatários: os (meus) alunos. São publicados ao ritmo da leccionação dos temas do programa.

É possível que não "motivem" todos os leitores.

Por outro lado, reconheço que o texto presente não é propriamente um exemplo de "clareza" -- embora o seja de rigor.

Coisas...