Já não pouso em Mértola há bastante tempo. E, apesar dos meus projectos nesse sentido, nunca gozei este acontecimento notável que, cada 2 anos, é o Festival Islâmico de Mértola. E este ano é ano do 5º Festival, como detalha este texto rapinado do Fugas, o suplemento do Público, desta semana
[descarregue, em pdf, o programa completo]:Temos boas notícias: este é ano de Festival Islâmico em Mértola. A partir de quinta-feira e até domingo, as vielas da vila alentejana vão transformar-se num imenso "souk", haverá odaliscas e música em cada canto.
Quem conhece Mértola embrulhada na sua habitual tranquilidade não irá reconhecê-la se por lá passar nos próximos dias. A modorra vai ser sacudida, a temperatura será aprazível à sombra dos panos que cobrem as ruas, a vila branca encher-se-á de cor. Falamos da 5.ª edição do Festival Islâmico, que a cada dois anos anima a margem direita do Guadiana, e que terá lugar entre 21 e 24 de Maio (de quinta-feira a domingo). Se sempre sonhou conhecer os nossos vizinhos do Sul, se tem saudades do sabor de um autêntico cuscuz, ou se os seus filhos já não o podem ouvir falar sobre os momentos maravilhosos que passou em Marrocos, esta é a altura ideal para pegar neles e encetar uma viagem até ao Magreb e mais além... sem sair do Alentejo.
Mas do que se trata, afinal? De uma versão "arabizada" das feiras medievais que pululam um pouco por todas as urbes onde haja um castelo a servir de cenário? Pelo contrário. A ideia não é fazer uma reconstituição histórica da Mirtolah muçulmana do século VIII, mas sim dar a conhecer o século XXI tal como ele é vivido a sul do Mediterrâneo, revivendo o espírito cultural do Garb Al-Andalus - época áurea da povoação que chegou a capital de um reino taifa.
Como se estivéssemos a percorrer uma rua do Cairo ou de Marraquexe, nas vielas apertadas da parte antiga recria-se o ambiente dos "souks", com comerciantes marroquinos e egípcios a venderem coloridas peças de cerâmica, bijutaria brilhante, vestuário tradicional e artigos em pele, junto a barraquinhas onde é possível provar os biscoitos "cornes de gazelle" e outras delícias feitas de amêndoa e mel, acompanhadas por um chá de menta bem doce e quente, como é suposto.
Tal como numa medina típica, linguarejares estranhos misturam-se com os sons do trabalho artesanal ao vivo, com os alentejanos dos montes circundantes a mostrarem-nos com quantos pontos se cozem umas botas e a destreza necessária para manejar um tear. Como há muito aprenderam que o caminho para o futuro de Mértola passa por cultivar o passado, jovens artistas do concelho mostram também o seu trabalho: joalharia contemporânea inspirada em peças islâmicas, réplicas em barro dos candis muçulmanos e lucernas romanas encontradas durante trinta anos de escavações arqueológicas, olaria pintada com técnicas antigas. Tudo isto acontece a partir das dez horas da manhã, prolongando-se por doze horas consecutivas. Porém, o evento que agora comemora o seu décimo aniversário não se esgota no mercado de rua, por mais animado que este seja com a passagem constante de tocadores de flautas e alaúdes, malabaristas e cuspidores de fogo. As actividades agendadas são múltiplas e pensadas para todas as idades. Os "contos do souk", narrados dentro de uma tenda instalada junto ao castelo; as oficinas de danças orientais, onde aprendemos a menearmo-nos com a sensualidade de odaliscas; o teatro ao fim da tarde; os lançamentos de livros e conferências; as exposições de fotografia e ourivesaria; os jogos tradicionais ou os passeios de barco no Guadiana são acontecimentos de entrada livre ou custo reduzido de que toda a família pode desfrutar.
A noite traz consigo espectáculos de dança e concertos verdadeiramente cosmopolitas, com actuações de grupos vindos da Turquia, Sudão, Síria, Argélia, Egipto e Marrocos, bem como de França e de Itália. Para não nos esquecermos que, afinal, não é no meio do deserto mas na planície que nos encontramos, o festival encerra com a actuação de grupos corais alentejanos.
De mesquita a igreja
Já que nos encontramos na vila-museu, vale a pena reservar algum tempo e aproveitar o horário alargado deste fim-de-semana festivo para visitar alguns dos núcleos que dão a conhecer as muitas vidas de Mértola. De qualquer forma, quem resiste a uma subida ao castelo, nem que seja só para apreciar o panorama numa perspectiva de ave? Curiosos, os olhos não se limitam a voar pela extensão florida das planícies, nem a repousar no topo das serras circundantes. Descem até ao rio, seguindo as voltas lentas de uma cegonha, e detêm-se nos pátios escondidos a quem passa nas ruas, verdadeiros jardins secretos com aroma a jasmim e flor de laranjeira. A fortaleza é dominada pela Torre de Menagem, que alberga um conjunto de fragmentos arquitectónicos da época pré-islâmica e é testemunha do século em que a povoação foi sede nacional da Ordem de Santiago. O recém-inaugurado circuito de visitas da alcáçova permite transitar pela zona onde as escavações arqueológicas das últimas décadas têm decorrido, com vistas sobre as fundações de um bairro islâmico, mosaicos e de um baptistério do primeiro milénio.
O nosso percurso segue agora em direcção à Igreja Matriz, erguida sobre a mesquita de outrora. Dessa época, o interior de abóbadas nervuradas conserva ainda quatro arcos em ferradura e o "mihrab" - nicho que indica a direcção de Meca. Por estes dias é habitual que a Bíblia e o Corão se encontrem lado a lado no altar, celebrando um encontro inter-religioso em solo sagrado para os dois credos.
Se o tempo não der para mais e a ideia for visitar um só núcleo expositivo, continue-se então o espírito da festa, seguindo directamente para a Casa de Bragança, onde está guardada a mais importante colecção de arte islâmica do país. Entre utensílios domésticos, jóias, peças de osso e estelas funerárias destacam-se os objectos de cerâmica em "corda seca", técnica decorativa oriental de vidrado sobre pintura. Ali perto, a antiga Igreja da Misericórdia acolhe o núcleo de arte sacra cristã, com imagens e alfaias litúrgicas recolhidas em igrejas do concelho.
Um convento divertido
Importante entreposto desde o tempo em que fenícios e cartagineses utilizavam o seu porto fluvial para trocas comerciais, a Myrtilis romana era um dos pontos de passagem da via que ligava Baesuris (Castro Marim) a Pax Julia (Beja). Provas essenciais do seu estatuto foram encontradas há uns anos, quando obras no edifício da Câmara Municipal deixaram a descoberto vestígios de uma residência romana datada de 2000 a.C., e que agora constitui o núcleo românico.
Para que a descrição não se torne exaustiva, e porque o passado de Mértola é muito mais rico do que o seu reduzido tamanho permite imaginar, informe-se que a lista dos espaços museológicos inclui ainda a forja do ferreiro, a oficina de tecelagem e a basílica paleocristã, oculta num edifício incaracterístico fora da zona muralhada. E até no pátio da escola secundária nos deparamos com uma necrópole romana e as ruínas da ermida de São Sebastião, de origem quinhentista.
Seja qual for a escolha, há um sítio que não deve perder. Embora se encontre ali mesmo à mão, logo após a ponte sobre a ribeira de Oeiras, poucos conhecem o Convento de São Francisco, um misto de alojamento rural, retiro artístico e reserva natural. Propriedade privada de uma família holandesa, o espaço pode ser visitado mediante o pagamento de uma pequena taxa, de que as crianças estão isentas. O jardim é um oásis de frescura, onde arbustos exóticos convivem com orquídeas e flores silvestres fazem companhia a ervas aromáticas e condimentares. Sistemas antigos de irrigação, tanques de nenúfares e um labirinto aquático constituem o Museu da Água, cuja principal atracção é uma nora movida por um burro-robot, que fará com certeza a delícia dos mais pequenos. A antiga capela, agora transformada em galeria de arte, é outro lugar de uma tranquilidade ímpar, de onde se podem observar a colónia de peneireiros que têm guarida no convento, bem como inúmeras outras aves que ali se sabem protegidas.
Convém não esquecer que estamos a um passo do Pulo do Lobo, a poucos quilómetros do complexo mineiro das Minas de São Domingos e do cais do Pomarão, e bem no coração do Parque Natural do Guadiana. Bem vistas as coisas, um fim-de-semana é bem capaz de ser curto. O melhor mesmo é começar já a planear o regresso.
escrito por ai.valhamedeus
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