Para não esquecer...

RELIGIÃO E LITERATURA

A ver se aclaro ou acabo de confundir a discussão sobre a «teologia» de Saramago e o ateísmo de muitos cristãos.

Os literalistas, ao quererem safar-se do perigo de falsas, pessoais e temporais interpretações, têm que tragar-se as contradições e irracionalidades do tipo...
  1. um Deus omnipotente a necessitar 7 dias para terminar a sua única obra;
  2. um Deus todo poderoso a necessitar um dia de descanso como a mais débil das suas criaturas;
  3. a separação de luz e trevas antes da criação do sol;
  4. Deus a proteger um Caim que foge e se esconde de pessoas que ainda não existem;
  5. Deus a deter o sol, quando o tinha criado parado.
Os interpretacionistas, para se safarem destas e outras irracionalidades dizem que a narração bíblica é literatura que necessita interpretação. Essa interpretação será feita, obviamente, por um estranho ao processo da escrita.

O problema é que isso me obrigaria a ler TODAS as as interpretações. E depois... decidir qual delas é a «correcta». Para os católicos a resposta já aqui foi dada: a que decida o Vaticano. Com que critérios? Os do poder. É óbvio e natural que neste momento, por exemplo, a verdade assente no que durante muitos anos interpretou, disse e escreveu um teólogo chamado Ratzinger. Isso, apesar do vai-vem de muitas dessas interpretações ao longo da história
[e nem estava a pensar sequer na Inquisição].
A disputa criada e alimentada contra o livro de Saramago tem muito pouco a ver com o que atrás está escrito. A maioria dos cristão tão exaltadamente ofendidos não faz a menor ideia de como estas coisas acontecem no interior das Igrejas. A ofensa funciona aqui também por interposta interpretação. São os Carreira das Neves e companhia que interpretam o livro de Saramago, não como críticos literários, mas como teólogos. E nisto é que eu vejo má-fé e desonestidade. Quando e onde é que Saramago se apresentou como teólogo? Quando é que Saramago apresentou o seu livro para ser adoptado como manual nas aulas de Exegese Bíblica, na Universidade Católica? Quem é que encarregou Carreira das Neves ou Peter Stilwell de ler o livro com a intenção de lhe darem ou negarem o «nihil obstat»? Quando foi a última vez que uma Faculdade de Teologia enviou algum livro a Saramago para sua aprovação? Por que lhe querem dar agora tamanho poder?

Então, onde está a grande ofensa? Como afirma Carreira das Neves, os hereges só podem estar dentro da Igreja. As reais ofensas à religião só podem ser provocadas e sentidas por aqueles que estão dentro. Os de fora não racham lenha, como se dizia nos meus anos moços.

Em conclusão, permitam uns, que os teólogos sigam com a discussão entre literalistas e interpretacionistas e escrevam muitos livros e manuais teológicos; e os outros, que Saramago se mantenha saudável para escrever mais uma dúzia de bons romances.

escrito por José Alberto, Porto Rico

11 comentário(s). Ler/reagir:

Anónimo disse...

SUBSCREVO, na totalidade bem hajam os que ainda raciocinam. Destaco do comentário:
"Como afirma Carreira das Neves, os hereges só podem estar dentro da Igreja. As reais ofensas à religião só podem ser provocadas e sentidas por aqueles que estão dentro."
" Em conclusão, permitam uns, que os teólogos sigam com a discussão entre literalistas e interpretacionistas e escrevam muitos livros e manuais teológicos; e os outros, que Saramago se mantenha saudável para escrever mais uma dúzia de bons romances."

Quebracillas disse...

Nem um frade capuchinho diria mais nem melhor que este portorriquenho.

Percebe-se que frequentaste o seminário de Santo Domingo e a Faculdade de Teologia de San Juan.
Pronto

Deus existe

Ganhaste

Dou-me por vencido e silencio-me e como diziam os romanos:

"Contra uno brutatis num lutatis"

J Alberto disse...

Quebracillas (trad.=destructor de celeiros):

Que importância tem para este debate que o autor do texto seja Capuchinho, Dominicano, ateu ou agnóstico? Por que não comentas o conteúdo e nos dizes o que pensas sobre o assunto?

Especulando humorísticamente ao teu jeito, e aproveitando que estamos entre latinistas, esse «percebe-se», não estando acompanhado de qualquer prova, é uma clara impressão cirrípede.

Os gregos diziam: contra a força (Ad Hominen), não há argumentos.

Um são Domingo.

Manuel Rodrigues disse...

José Alberto,
Pensei, longamente, se me havia de meter nesta polémica em torno de "Caim". Afinal, não será da própria natureza do pensamento dogmático não admitir a possibilidade de outros pontos de vista? Como se todos os pontos de vista não fossem sempre vistas (às vezes curtas, é certo) a partir de um ponto. Mesmo quando o ponto, dito de inspiração divina, é tido por um ponto luminoso.
Felicito-o pelo comentário, porque parte de um ponto de vista (vistas largas,neste caso), no qual me revejo inteiramente.
Só espero que Joseph Ratzinger, que, na sua infinita vigilância,acompanha certamente o "Ai Jesus!" (se os seus autores, ao menos, advinhassem a fogueirada que os espera...) que não o chame à Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, para retratação pública, pela abominável heresia.
Aproveito esta minha estreia no "Ai Jesus!" para enviar um especial abraço ao meu "velho" amigo ai.valhamedeus.
Para si, igualmente, um grande abraço

Campino da Azinhaga disse...

"...que saramago se mantenha saudável para escrever uma dúzia de bons romances"

É assim q termina o Zé de Porto Rico.

Pois bem com os meus euros ele não vai comprar medicamentos pois o velho é um poço de contradições

Diz ele:
"deus é rancoroso e cruel"

afinal em que ficamos Deus existe ou não existe

e mais à frente vomita

"...deus é um filho da puta"

Será possível que depois destas e muitas outras frases declarativas e afirmativas ainda venha dizer que Deus não existe???

Mas não está ché - ché, não.

O que ele é, é uma pessoa arrogante, prepotente, grosseira e provocadora e esta polémica mais não é que publicidade (enganosa) ao livro que acaba de cagar

Por isso repito:
-Com os meus euros o gajo não compra medicamentos, não

Manuel Rodrigues disse...

Só para corrigir no meu texto a palavra adivinhassem, que, por lapso, saiu com incorrecção gráfica.

Ai meu Deus disse...

...só para retribuir o abraço do Manuel Rodrigues (e dar-lhe as boas vindas a este espaço de liberdade. Já não era sem tempo, Manel! ;-))

José de Soiza sem ser Lara disse...

A propósito de «teologia» permita-me recordar-lhe que o Tempo engole coisas do arco da velha.

E transforma episódios marcantes em curiosidades.

É só dar tempo ao tempo.
Com tempo, as vitimas de Saramago no Diário de Notícias morrem e tudo esquece.

Entra aí o papel da História.

Que minguém esqueça o estalinismo desse libertário de agora.

De agora, quando já soletra com dificuldade e a Imprensa lhe faz vénia.

Sejamos anarquicamente contra o status quo.

A criatura para ter a presunção que está viva tem que incomodar os outros.

A mim, agora, isso também não me preocupa muito uma vez que (penso eu) já não dispõe do poder que dispos durante o período estalinista de 1975.

Nessa altura foi perigoso e causou muitos males, saneamentos e prejuízos a muito boa gente.

Neste momento tem apenas burlescos anseios publicitários e alívios anticleticais típicos de quem não entendeu o Antigo Testamento mas, petulantemente se arroga ter percebido Garcia Marquez

J Alberto disse...

Manuel Rodrigues
Obrigado pelo comentário. Não se preocupe com o que possa vir da SCDF. As suas armas não me podem atingir. Gozo de dupla imunidade:
1. A que me dá a própria SCDF que não reconhece nenhum valor aos leigos «pé-descalço», nem sequer para serem herejes.
2. Não estudo nem ensino em nenhuma instituição católica.

Anónimo disse...

Afinal somos é demais crentes porque caso contrário não teriamos tanta preocupação! Perceber Garcia Marquez não é assim tão dificil!

J Alberto disse...

Pois não, Anónimo, difícil é perceber os que nunca leram nada de García Márquez, nem de Saramago, nem da Bíblia e estão furiosos, porque lhe dá jeito a alguém que estejam assim!
Na religião como na política...