Para não esquecer...

DO CONTRA [55] MAIS UMA VEZ SE LIXOU O MEXILHÃO

Rezam as notícias que os bispos portugueses lamentam as noticiadas desgraças na Madeira. Há mesmo um coro reverendíssimo, que inclui o reverendíssimo arcebispo de Braga e a reverendíssima conferência episcopal portuguesa, a lançar gritos de dor pela destruição e sofrimento do povo da Madeira.

Eu registo, com agrado, os sacrossantos lamentos e os reverendíssimos gritos
[que se juntam às declarações sentidíssimas do senhor Escusa e do presidente do conselho].
E pergunto: sendo as referidas reverências, como se sabe, interlocutores privilegiados com as autoridades divinas
[são, como se sabe, representantes na Terra das ditas autoridades];
sendo as referidas autoridades divinas, como também se sabe, as responsáveis pela criação e manutenção do Universo
[e o Universo é tudo quanto existe, incluindo as desgraças da Madeira];
sendo tudo isto, pergunto o que dirão, na sequência dos lamentos, as referidas reverências às referidas autoridades divinas. Protestarão as primeiras junto das segundas por se terem
[as segundas]
descuidado? Chamarão as primeiras a atenção das segundas no sentido de estas segundas terem mais cuidado em futuras situações análogas? Repreenderão as primeiras as segundas, mesmo sem poder ou autoridade para tal, por tamanho descuido das segundas? ou exigir-lhes-ão responsabilidade e reparação?

Talvez alguma autoridade vaticanina, um domingo-dia-do-senhor destes ou um dia útil destes, nos esclareça. Até lá, franzo o sobrolho à divina providência, que se deixou dormir -- sendo que, como de costume, quando a maré se alevanta, quem se lixa é o mexilhão. Mexilhão madeirense, no caso.

escrito por ai.valhamedeus

14 comentário(s). Ler/reagir:

Fátima Rodrigues disse...

Sinceramente!
As forças divinas nada têm a ver com as limitadas forças (e interesses ) humanos...
Tudo isto foi o resultado das (muitas) humanas asneiras...

Anónimo disse...

O raciocínio desta gente é impressionante, mesmo para quem como eu não é praticante nem me dedico a fés e orações, há aqui quem só saiba raciocinar através da existência ou nao de Deus, afinal parecem ser mais crentes do que os crentes. Tudo o que acontece se limita à questão Deus existirá?

Anónimo disse...

E isso é mau? Acabei de ler Caim e o mesmo se pode dizer do livro:a busca do Deus verdadeiro. Deus essência, conceito do Bem puro e não das nossas representações de Deus. E tem razão o Anónimo: estes são os verdadeiros crentes. E é nessa linha que me situo. Parafraseando o chavão que muita gente agora usa, essa é que é a minha praia.
Uma coisa é ser anticlerical, a outra, bem diversa, é ser Anticristo.
Esta "gente" é anti Vaticano
Mas, é bem verdade que o que sucedeu é fruto dos erros humanos. E Suas Reverendíssimas são humanas e não divinas. É um ataque a quem se julga representante de Deus na terra e se aproveita das benesses que isso confere, e não à Fé dos homens.

Anónimo disse...

Caim, li-o logo no mês que saiu mas nem isso da
"busca do Deus verdadeiro. Deus essência, conceito do Bem puro e não das nossas representações de Deus"
eu lá encontrei, eu encontro religião em pouca coisa aliás encontro religião só mesmo na religião e nos religiosos nunca nas coisas da vida... da minha vida etc
anónimo nº1

Anónimo disse...

Pois não, não está lá explícito. Mas eu vejo por trás da argumentação e da crítica mordaz aos actos de Deus o desejo da procura de um Deus que faça sentido. Um Deus contrário ao do livro e, para mim, isso é religiosidade, ou o que lhe quiser chamar. Nada tem a ver com religião católica instituída, ou outra. A figura de Caim faz-me lembrar o soneto de Antero de Quental que termina mais ou menos assim: abri-vos portas ante meus ais. E as portas abriram-se e ele só encontrou "silêncio e nada mais". O Saramago, que é o Caim, ou vice-versa, diz a certa altura: A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus,nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele.

jcosta disse...

Bem ao contrário do que a Fátima advoga, o assunto merece um aturado debate. Para que tal aconteça é necessário resistir a algumas ideias feitas e suspender, se possível, convicções elaboradas sobre crenças. As "humanas asneiras" quase sempre são convocadas para explicar o que supostamente nos escapa do convívio da razão. Ainda assim, o que são "humanas asneiras"? Os "pecados" tipificados pelos excessos carnavalescos a cargo do Alberto? A pressão urbanística que inconscientemente levou à ocupação dos espaços de segurança necessários às linhas de água? Os offshore’s que constituem uma pornográfica fuga aos impostos? Mas, admitindo tudo isso, o que têm suas reverendíssimas e santas criaturas a ver com a tragédia?
Não darei a resposta porque há por aqui gente que lê no meio das linhas e, qualquer que ela fosse, pouco adiantaria para o debate.
A questão que me interessa – e que aqui é suscitada – andará por estes termos: Admitindo que uma entidade divina tenha criado o mundo, o que faz ela com aquilo que criou? Deixou tudo entregue à fauna e à flora, que entretanto criou, e assiste, de camarote, ao que vai acontecendo?
Depois da criação o acaso governa o mundo?
As catástrofes naturais são entendíveis à luz da existência de um Deus criador (sumamente bom, justo,...)? E os inocentes, Senhor? Que pecado lhes assacais para tal castigo? Ou ainda, o que faz aqui a religião pela voz dos seus dignitários?
Como corolário: vamos lá então ajudar solidariamente todos os que sofrem com esta catástrofe, o resto pode esperar.

O Poema do Antero é bem capaz de ser este:

«Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!
Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura…
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!
Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado…
Abri-vos, portas d’ouro, ante meus ais!
Abrem-se as portas d’ouro, com fragor…
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão – e nada mais!»

Anónimo disse...

Antes de mais, «vamos lá então ajudar solidariamente todos os que sofrem com esta catástrofe, o resto pode esperar.»...E esta é, de momento, a primeiríssima prioridade.

Mesmo assim, vamos também ao "problema" enunciado por Jcosta:«Admitindo que uma entidade divina tenha criado o mundo, o que faz ela com aquilo que criou? Deixou tudo entregue à fauna e à flora, que entretanto criou, e assiste, de camarote, ao que vai acontecendo?
Depois da criação o acaso governa o mundo?
As catástrofes naturais são entendíveis à luz da existência de um Deus criador (sumamente bom, justo,...)?»

Na perspectiva de quem (apenas) usa a razão, seria expectável que Deus manipulasse a humana inteligência, no sentido de fazer reverter/anular as "humanas asneiras"?! Não estaríamos então a considerar Deus de manipulador da humana liberdade?! Considero que muito do que são as "catásfrofes" é resultado da humana asneira/negligência, tal como «a pressão urbanística que inconscientemente levou à ocupação dos espaços de segurança necessários às linhas de água»...

Já quanto à humana observação, na perspectiva de quem se sente muito pequenino face a tamanha imensidão..., é também ela, para mim, um profundo mistério: «E os inocentes, Senhor? Que pecado lhes assacais para tal castigo?

Ai meu Deus disse...

Lendo o último anónimo...

Deus só precisa(ria) de manipular a humana inteligência, no sentido de fazer reverter/anular as "humanas asneiras", porque a sua obra (refiro-me a Adão e Eva), também neste campo não parece ter sido admirável. Criou um homem e uma mulher tão mal que é preciso que Deus lhes "manipule a liberdade" para não fazerem asneiras...

Que raio de Deus!...

jcosta disse...

O "anónimo" pensa que ajudou a esclarecer alguma das questões propostas?

"Na perspectiva de quem (apenas) usa a razão..." e nas outras perspectivas, à margem ou sem a razão, usaremos?

Limitou-se a reproduzir as problemáticas questões, ou não?

Anónimo disse...

Para os que se afirmam laicos e ateus, como a maior parte daqueles que escrevem neste blogue, não deixa de ser curiosa a obcessão pelas coisas do divino que marca os seus comentários.
Tudo que acontece de bom no mundo é fruto do trabalho humano... tudo que acontece de mau no mundo é culpa do Deus irado...
Depois querem fazer teologia racional e razão teológica... acham que assim podem chegar a alguma conclusão...
já deviam saber que as questões de fé não são racionalizáveis e a crença invade todos os seres humanos, mesmo os ateus e materialistas...
os argumentos clarificam o pensamento mas não resolvem o essencial da existência, nunca resolveram...
É claro que o ordenamento do território da Madeira e do mundo é esencialissimo... mas não se esqueçam que a destruição natural atravessa todos os tempos e lugares... os racionalistas/positivistas ateus nas explicações da origem do universo conjecturam, estranhamente com o recurso a uma fé pessoal uma série de possibilidades catastróficas que permitiram o progresso que hoje conhecemos... e esse progresso tem pouco mais de um século em milhões de anos de existência da vida tal como se conhece... não vale a pena assacar responsabilidades para lá do razoável às decisões políticas... reduzir as catástrofes naturais a esse tipo de discussão é levar o debate para o campo ideológico e continuar a ignorar que o mundo é a casa de todos e a sua preservação implica um trabalho colectivo... esse sim é o debate a fazer... sem cor partidária, sem ideologia, sem religião, sem exclusão... o resto serve apenas para encher notícias e manter tudo tal qual como está... mudando apenas - tantas vezes pelo preconceito - os protagonistas da acção...

toino do campo disse...

Li o último comentário até à última palavra. Fiquei com a sensação de que faltava uma (palavra): Amen! Assim resolvemos a coisa, sem argumentos perigosos, sem racionalidades perigosamente partidárias... Amen!

Anónimo disse...

Segundo ouvi uma ilustre colega, que teve seu esposo a trabalhar na construção dos túneis da madeira, tudo o que foi retirado para se construir os túneis(pedras e grandes pedras, terras e afins) foi levado para as montanhas e despejado lá. A comissão de ambiente na altura não deixou/autorizou "atirar" ao mar estes entulhos porque podia prejudicar as águas. E agora quem prejudicou?
Quelita

Ai meu Deus disse...

Ó Quelita, que bom reler-te (sempre incisiva)!

Besito de... saudades (cómo se dice "saudades" en castellano?)

J Alberto disse...

Por mais estranho que te pareça, «saudades» em espanhol (porque não só na língua de castela) diz-se «saudades». Um lusismo. Menos puristas que muitos portugueses.
Antes desse empréstimo, a palabra espanhola era «nostalgia».