Dia triste, ameaçando chuva. Cinzento como o quotidiano de muita gente. Surge uma mulher sobraçando uns sacos de lixo e uma vasilha de plástico que deposita no contentor, sem preocupações de reciclagem. Heresia! penso através da janela de vidro do café, bebendo sem interesse o líquido deslavado. É que só consigo beber cariocas. Devo ter nascido no Rio na outra encadernação. Sim encadernação. Encarnação já está muito vista, e nós temos de ser criativos e originais, combinando palavras gastas por outros, mas de outro modo.
É como fazer reciclagem.
Eis quando surge outra personagem no meu horizonte de camarote de primeiro andar: um homem de meia-idade de aparência pobre, mas não miserável, junto aos contentores a alçar a perna para cima da bicicleta, levando atrás uma espécie de cesto com tralha, onde sobressaía uma vasilha de plástico. Não foi difícil adivinhar o que não presenciei.
E lá foi ele, de mãos nuas, a limpar o nariz e a boca de algumas humidades, devido ao frio. O que não mata engorda, lá diz o povo. Que nem sempre tem razão.
Uma boa hora depois…
De regresso a casa passo pelos mesmos contentores. E que vejo? Um outro homem, igualmente de meia-idade, mas mais encorpado e um tudo-nada barrigudo. A remexer num dos contentores.
De mãos nuas. Só espero que também a este lhe não apeteça, a seguir, limpar o nariz e a boca.
Embruscada
(é uma palavra que descobri hoje e que traduz exactamente o que senti, embora o meu computador me coloque um traço vermelho por baixo, coitado).Embruscada, dizia eu, desviei o olhar para não intimidar quem procurava os restos dos outros ainda aproveitáveis, quiçá.
Se se descuidam, ainda vão pagar 23% de IVA .
escrito por Gabriela Correia, Faro
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