Para não esquecer...

ABRIL, ÁGUAS MIL

Em Abril, águas mil, diziam, à uma, a minha Mãe e a minha Avó, quando me pressentiam queixosa, chorosa até, por não poder pôr o pé na rua.

Coadas por um funil, rematava a minha Avó, a traduzir em imagem a chuva miudinha que ensopava quem ousasse sair de casa sem qualquer protecção contra ela.

Chuva de molha tolos, e piscava o olho à minha Mãe.

Bem se lhe dava a elas que eu não pudesse ir brincar no empedrado da rua! Jogar ao mata, à péla, com uma bola, por vezes feita de papéis muito bem amarrotados no côncavo das mãos. A necessidade aguça, ou antes, aguçava o engenho, não é?

A chuva não era problema que nos demovesse, a bola improvisada é que, coitada, ficava desfeita em menos de um fósforo.

E o livro? Insistia a minha Mãe. Tu gostas tanto de ler…

Eu fazia ouvidos de mercador à insinuação da minha Mãe, e teimava com aquela chuva embirrenta, insulsa, que me vedava o prazer de fazer pontaria a uma pedra, espetada ao alto no interstício mais adequado à função. Acertar nela era o orgulho supremo, a assertividade da nossa destreza.

Que querem? Não havia consolas, nem televisão àquelas horas.


Compasso. Visita pascalNo Abril da minha infância, ainda não havia França. Nem Tarrafal
(que se soubesse),
que até rima com Natal. Nem soldados a dizerem: adeus, até ao meu regresso! Não havia eleições, nem revoluções
(que se soubesse).
Só havia um senhor em Belém e uma Nossa Senhora em Fátima.

E havia a Festa da Páscoa! Que era quase sempre em Abril.

Na aldeia da minha Avó, o padre ia de casa em casa, no Domingo de Páscoa, transportando o hissope mergulhado numa caldeirinha com água benta, e borrifava a sala de visitas dos mais abastados onde, em mesa de toalha de renda, se destacava um envelope chorudo. Bebia-se licor com o dono da casa: o padre e seus acólitos que transportavam a cruz encimando um bastão alto. De prata! Se calhar era latão ou estanho. Não sei. E também não importa.

Demoravam-se mais do que a conta. Depois dirigiam-se, apressados, a casa do pobre, que apresentava numa única divisão uma mesa pequena ao centro, com uma toalha colorida de plástico
(última novidade)
e, a dominar, uma laranja coroada por 50 centavos ufanos e à vista de todos.

Um padre ou outro ignorava a moeda luzidia espetada na laranja, por razões cristãs.

Mas a viúva não o permitia: não sou menos c’os outros, atão! Exclamava com entono. E enfiava o dinheiro na mão renitente do acólito mais jovem.

Também aqui o padre cumpria a tradição, borrifando a laranja e a toalha de plástico, mas demorava-se pouco. Até porque viúvas não bebem.

E lá saía a correr, afobado, como se tivesse o refogado ao lume, ou os feijões na panela. Seguido da garotada, felizes por participarem naquele entremez, que só ocorria uma vez por ano.


Na cidade o padre, que me recorde, não ia a casa dos crentes para a Visita Pascal. Nós é que íamos à igreja na Sexta-feira Santa para percorrermos as ruas estreitas e escuras do Calvário
(da toponímia da cidade faz parte precisamente a Rua do Calvário),
de vela na mão, atrás de Nosso Senhor dos Passos, de rosto contristado e vestes roxas. Bem como da sua chorosa Mãe, igualmente de roxo.

Pela mão da minha Avó eu seguia, fascinada, toda aquela procissão de luzinhas, umas enfeitadas com uma espécie de abajur ao contrário, hexagonal ou redondo, protegendo a mão de quem a segurava, do pingo quente da cera derretida; outras sem protecção nenhuma. Porventura, a cera quente curava as calosidades das mãos envelhecidas pela labuta diária.

Fosse como fosse, no Sábado de Aleluia, mal o sol rompia, a minha Avó desatava numa cantilena alusiva à alegria que se apossava dela, pelo fim da Quaresma.

Nós, arreliados e sonolentos, acabávamos por exultar com ela: ia haver amêndoas e folar!


Pois, na minha infância não havia playstations e a obesidade não era problema.

Ah, e o 25 de Abril vinha a seguir ao 24 e precedia o 26. Que pena!

escrito por Gabriela Correia, Faro

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